quinta-feira, 31 de maio de 2018

Um artigo sobre igualdade de género



IGUALDADE DE GÉNERO
Como brincar com bonecas agrava o risco de pobreza na velhice

Mais escolarizadas do que os homens, as mulheres portuguesas estão em maioria na engenharia, na medicina, na magistratura. Mas, seja qual for a profissão, ganham sempre menos. A desigualdade de género, que chega a atingir os 600 euros, inculca-se no jardim-de-infância e redunda depois numa maior exposição à pobreza.


Como é que o facto de nos jardins-de-infância as meninas brincarem com cozinhas e os meninos com foguetões contribui para a persistência de desigualdades penalizadoras para as mulheres e ajuda a que estas cheguem à velhice com reformas mais baixas e mais expostas ao risco de pobreza? A resposta está no estudo Igualdade de Género ao longo da Vida, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que é apresentado esta segunda-feira e que conclui, por exemplo, que, logo à chegada ao mercado de trabalho, as mulheres entram a ganhar menos e são mais frequentemente contratadas em regimes precários, apesar de se apresentarem mais escolarizadas e com currículos mais completos.

“As diferenças salariais são brutais e absolutamente chocantes. Nas profissões menos qualificadas, chegam a ultrapassar os 200 euros, o que é muitíssimo porque estamos perante salários miseravelmente baixos”, adiantou Anália Torres, socióloga e coordenadora do estudo que aponta ainda disparidades salariais a rondar os 600 euros entre os representantes do poder legislativo e de órgãos executivos. À discriminação feminina no trabalho pago – as mulheres jovens têm um salário médio/hora de 5,8 euros, contra os 6,1 euros auferidos por eles – soma-se a sobrecarga nas tarefas do “cuidar”, da casa e dos filhos, às quais as mulheres dedicam o dobro do tempo.

A discriminação e a sobrecarga feminina nos cuidados com os filhos e com a casa não é novidade, num país que remunerou sempre mais a função produtiva do que a reprodutiva. O que este estudo faz é mostrar, quantificando, que as desigualdades se impõem logo no início da idade adulta, entre os 15 e os 29 anos de idade. Aliás, este estudo distingue-se dos restantes porque, ao longo de mais de 400 páginas, sete investigadores mediram as desigualdades no arco temporal 2000-2016, numa perspectiva comparada com outros países europeus, em três diferentes fases da vida: até aos 29 anos; entre os 30 e os 49 anos de idade, altura em que homens e mulheres (mas mais as mulheres) correm entre o trabalho pago e os cuidados da casa e dos filhos, por isso chamada “rush hour of life”; e, por último, na fase tardia da idade activa, entre os 50 e os 65 anos.


O artigo de Natália Faria, completo no jornal Público (28 de maio de 2018)




segunda-feira, 28 de maio de 2018

O menino que escrevia versos (Mia Couto)

Fotografia de José Eduardo Franco



O MENINO QUE ESCREVIA VERSOS


                                                   De que vale ter voz
                                                   se só quando não falo é que me entendem?
                                                   De que vale acordar
                                                   se o que vivo é menos do que o que sonhei?

                                                   (Versos do menino que fazia versos)


- Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
- Há antecedentes na família?
- Desculpe, doutor?
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava-a bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:
- Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor. Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
- São meus versos, sim.
O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?
Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
- O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.
Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.
Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
- Dói-te alguma coisa?
- Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Esta a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
- E o que fazes quando te assaltam essas dores?
- O que melhor sei fazer, excelência.
- E o que é?
- É sonhar.
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu--se, acarinhando o braço da mãe.
O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:
- Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clínica psiquiátrica.
A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.
Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendidos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.
- Não continuas a escrever?
- Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida - disse, apontando um novo caderninho - quase a meio.
O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.
- Não temos dinheiro, fungou a mãe entre soluços.
- Não importa, respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica que o menino seria sujeito a devido tratamento.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto de internamento do menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração.

Mia Couto

Do seu livro O Fio das Missangas (2003)



sexta-feira, 25 de maio de 2018

Educação e aprendizagem segundo Alberto Pimenta




0:49 / 1:43 Educação e aprendizagem segundo Alberto Pimenta

Excerto de "As quatro estações" de Alberto Pimenta. Lisboa, & etc. 1984.





quinta-feira, 24 de maio de 2018

As amadas (João Cabral de Melo Neto)

Fotografia de Alice Heck



AS AMADAS

As amadas rebentam nas fontes do poema,
as amadas não são a filha do rei,
uma delas não sabe onde me encontrar;
no pensamento vizinho ao meu
cresce o desejo das amadas;
vou apanhar os peixes da lua
para a fome das amadas.
Mas meu quotidiano irreparável
perdendo suas formas volantes:
- Por que as nuvens baixas
pesando nos meus olhos?
Onde as amadas para minha espera?

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)




terça-feira, 22 de maio de 2018

Germano de Almeida, o contador de Estórias (Ana Cordeiro)

Fotografia de Marta Lança


GERMANO DE ALMEIDA, O CONTADOR DE ESTÓRIAS

Em 2006, Germano Almeida publica Eva, o seu décimo quarto título e é curioso verificar que ao longo dos anos, e já lá vão dezassete desde que publicou o primeiro livro, O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, tem reiteradamente afirmado não se considerar um escritor, mas sim um contador de estóreas. Explica a diferença pelo facto de que o que verdadeiramente lhe interessa é ter uma estórea e alguém a quem a contar. A forma só lhe importa na medida em que serve o conteúdo e os recursos estilísticos ou linguísticos que utiliza estão submetidos às necessidades do enredo que é, de facto, a sua prioridade. Ele pertence à geração que teve o privilégio de entrar no mundo da ficção pelas palavras ouvidas e não pelas palavras escritas, e por isso não é de estranhar que essa marca da oralidade esteja tão claramente presente nas suas obras.

Primeiro parágrafo deste artigo escrito por Ana Cordeiro sobre Germano Almeida, que podemos ler completo na revista Buala (15 de junho de 2010)




segunda-feira, 21 de maio de 2018

Germano Almeida vence Prémio Camões 2018


O vencedor do Prémio Camões 2018 é o escritor cabo-verdiano Germano Almeida.

O prémio que este ano está na sua 30.ª edição foi anunciado, após reunião do júri, no Hotel Tivoli, em Lisboa. O escritor, que nasceu na ilha da Boavista, Cabo Verde, em 1945, tem a sua obra publicada em Portugal pela editora Caminho que acaba de editar o seu mais recente romance, O Fiel Defunto. Estreou-se como contista no início da década de 80 e o seu primeiro romance, O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo, teve os direitos vendidos para vários países e foi adaptado ao cinema por Francisco Manso.

A notícia completa no jornal Público.


Deste blogue:

Um trecho do seu romance O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo

Uma crónica de jornal, "O velho Malaquias morreu"



De tarde (Cesário Verde)

Fotografia de Riccardo Palazzani



DE TARDE

Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Cesário Verde

1887



sexta-feira, 18 de maio de 2018

A traição (Alexandre O'Neill)



A TRAIÇÃO

quando do cavalo de tróia saiu outro
cavalo de tróia e deste um outro
e destoutro um quarto cavalinho de
tróia tu pensaste que da barriguinha
do último já nada podia sair
e que tudo aquilo era como uma parábola
que algum brejeiro estivesse a contar-te
pois foi quando pegaste nessa espécie
de gato de tróia que do cavalo maior
saiu armada até aos dentes de formidável amor
a guerreira a que já trazia dentro em si
os quatro cavalões do vosso apocalipse

Alexandre O'Neill



quinta-feira, 17 de maio de 2018

Uma Casa na Escuridão (José Luís Peixoto)



Escrevi até o princípio da manhã aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pêlo dos gatos. O sol a chegar à escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silêncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercício, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhã apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.

Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois, o tempo. Sempre o tempo como uma brisa. Uma aragem suave, mas definitiva, a empurrar-me os sentimentos, a deixá-los lá ao fundo e a mostrar-me na distância que eram pequenos, muito pequenos e sem valor. E sempre só a solidão. Sempre. Eu sozinho, a viver. Sozinho, a ver coisas que não iriam repetir-se; sozinho, a ver a vida gastar-se na erosão da minha memória. Sozinho, com pena de mim próprio, ridículo, mas a sofrer mesmo. Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. Muitas vezes disse amo-te, mas arrependi-me sempre. Arrependi-me sempre das palavras.
José Luís Peixoto


Do seu livro Uma Casa na Escuridão (Quetzal, 2009)
Desenho, por © Cath Riley



segunda-feira, 14 de maio de 2018

“Guiné”, anarquista encartado (Ricardo França Jardim)



"GUINÉ", ANARQUISTA ENCARTADO

César Figueira César foi provavelmente o pedagogo mais célebre da Madeira. À distância de duas gerações, pelo nome, talvez poucos o recordem, mas se se falar do “Guiné”, não faltarão histórias. Caucasiano de alvíssima pele, entroncado, com largo pescoco descaído para a direita, mais parecia um personagem do “Malhadinhas”, daqueles que varriam feiras à força do varapau, do que um autóctone da nossa antiga colónia. Aliás, a singular alcunha nada tinha a ver com África, mas pela semelhanca com um vapor da Companhia Colonial chamado “Guiné”. Esclareço. Se o “Guiné” professor fez parte do meu universo juvenil, já o mesmo não aconteceu com a embarcação homónima, que deixou de navegar em 1948, teria eu dois anos. Mas recordo-o pela evocação de uma história que ouvi vezes sem conta. Em Setembro de 1918, a escassos meses do armistício, navegava o “Guiné”, então sob o nome de “San Miguel”, entre o Funchal e Ponta Delgada, quando foi avistado pelo submarino alemão U 139, comandado por um tal Lottar von Arnaud de la Periere, recordista mundial, com 194 navios afundados. Vinha o “San Miguel” protegido pelo “Augusto de Castilho”, um barquito de pesca a que os expeditos políticos da Primeira República pintaram de cinzento e juntaram dois canhões decorativos, transformando-o em vapor de guerra.

Esperando embora morte certa, Carvalho Araújo, o comandante desta nau catrineta, atirou-se ao inimigo, retendo-o o tempo necessário para dar fuga ao “San Miguel”. Era uma época em que se imaginavam as guerras como jogos de cavalheiros, com quixotismos e códigos de honra. Por isso, afundado o pesqueiro, a tripulação alemã rendeu homenagem aos heróicos derrotados, prestou assistência aos sobreviventes e deixou-os seguir num bote a remos até a ilha mais próxima. E como nada se perde tudo se transforma, quando em 1930 a Empresa Insulana substituiu o "San Miguel" por um novo paquete a que deu o nome de "Carvalho Araújo", o velho navio continuou ao activo, com as cores de outra companhia, sob o nome de "Guiné". E talvez pelas obras de adaptação, ou pelo cansaco, ou porque se calhar também os velhos barcos apanham mazelas, escolioses, "bicos de papagaio", coisas assim, o "Guiné" passou a navegar inclinado a estibordo, lembrando o vagaroso andar do nosso professor de inglês, César ao quadrado Figueira, que tam- bém pendia para o mesmo lado. E só um espírito ilhéu pode consentir o surrealismo de alcunhar um homem pela sua parecença com um vapor.

Pois bem. Se a alcunha era surrealista, as aulas do "Guiné" conseguiam sê-lo ainda mais. Começava na verificação das presenças, gritando: "Quem falta que se levante." Estava aberto o circo. Que continuava quando o contínuo batia à porta e lhe respondia o "Guiné": "'Between'. 'between', entre, senhor Plácido." Demorava tempo até algum aluno mais sábio, dando conta da substituição do verbo pela preposição, tentar corrigir o mestre. Diz-se "come in", porque "between" designa situação de lugar, espaço entre duas coisas. Gargalhada. E o "Guiné" a fazer a parte: que o sr. Plácido, ao entrar ("to come") na sala, passava "between" (entre) as ombreiras da porta. Mais adiante, era o "Guiné" a traduzir "daily industry" (indústria de lacticínios) por "indústrias diárias". E nova polémica, com mal disfarçado gozo: lacticínios vem do leite, produzido diariamente pelas vacas, logo "indústrias diárias".

E tudo facilitava o zero em comportamento. Com o "Guiné" a acartar para o gabinete do sr. reitor os troncos de lenha com que lhe atulhavam a secretária. E as lagartixas a saltar do livro do ponto, e o milho em grão, e a guerra dos aviões e a malta, casacos do avesso, em saudação romana: "Ave César Imperial!" E se por acaso o ambiente estivesse pacífico, "Guiné" contra-atacava, propondo, em retroversão para o inglês, frases extraordinárias, assim: "Hoje, as vacas andaram a pastar em cima do meu telhado." Questão de forma, pouco interessa o conteúdo, defendia o "Guiné". E, anarquista encartado, logo subia a parada: "Os meus passarinhos são mais bonitos que os filhos do meu vizinho, porque foram comprados noutra mercearia, ponto final."

Na época, era a anarquia instituída. Porém, à distancia dos anos, vejo o "Guiné" como um palhaço por vocação. E por provocação. Com todo o mérito da palavra. Normalmente, as parelhas de "clowns" comportam urna dicotomia, dois contrários: o "Cara Branca", palhaço rico, sabichão, voz grave, que impõe, dá estaladas, e castiga com as lantejoulas do seu saber; e o Augusto, o palhaco pobre, trapalhão, que apanha, ri e faz rir, e subverte a ordem estabelecida das coisas, despertando o rebelde que há em cada um de nós. Aquele universo de Deus, Pátria, Autoridade, Carmonas, Salazares, Mocidade Portuguesa, reitores e manuais escolares de pensamento único, era o mundo dos "Caras Brancas". E nós, pobres meninos, casaquito e gravata, mascarados de homenzitos em miniatura, éramos prisioneiros naquele Liliput totalitário. E era este universo que o "Guiné" subvertia com a mais ingénua das canduras. Só por isso merece homenagem. Deve existir aí pela Madeira - tão rica em palhacos brancos, grotescos e maçadores - uma escolita qualquer, ainda sem orago. Ponham-lhe o nome de César Figueira César. Para, de futuro, haver algum garotito mais curioso a indagar: "'Guiné'?! Quem era esse gajo?"

Ricardo França Jardim


Magazine Pública (4 Maio 1997)




sexta-feira, 11 de maio de 2018

Escrito de memória (Pedro Tamen)

Fotografia de RiCArdO JorGe FidALGo



ESCRITO DE MEMÓRIA

Formado em direito e solidão,
às escuras te busco enquanto a chuva brilha.
É verdade que olhas, é verdade que dizes.
Que todos temos medo e água pura.

A que deuses te devo, se te devo,
que espanto é este, se há razão para ele?
Como te busco, então, se estás aqui,
ou, se não estás, porque te quero tida?
Quais os olhos e qual a noite?
Aquela
em que estiveste por me dizeres o nome.

Pedro Tamen


Tábua das matérias (1956-1991)



quarta-feira, 9 de maio de 2018

Do que a vida poderia ter sido (José Carlos Barros)

Fotografia de Microlito



DO QUE A VIDA PODERIA TER SIDO

Os amigos juntam-se e falam do passado,
da música que já não se ouve na rádio,
do inverno em que choveu semanas a fio
e o rio saiu das margens para desenhar

nos troncos das árvores os círculos imperfeitos
da idade. Eles sabem para si mesmos que falam
do que nunca existiu: das mulheres
que se renderam para sempre às palavras do amor,

das perdizes caindo de asa nas encostas
iluminadas da urze, das corridas memoráveis
do vinte e cinco de abril, das tardes de domingo
que haveriam de envergonhar a uefa

se a televisão estivesse presente nas finais dos torneios
dos bombeiros voluntários. É disso que os amigos
falam: do que a vida poderia ter sido
se não fosse a filha da puta da vida que foi.

José Carlos Barros



(Lido em Hospedaria Camões)


segunda-feira, 7 de maio de 2018

O dependentismo (Helena Matos)


Achei na pasta dos rascunhos esta mensagem com um artigo de Helena Matos publicado no Observador há quase quatro anos. Apesar do tempo decorrido, lá vai...


O DEPENDENTISMO

O legislador, na senda iluminista de levar ao povo a revolução que não escolheu, criou o dependentismo, com programa em 3 pontos: Para mim, deveres poucos ou nenhuns. Direitos todos. Amanhã logo se vê


Nem liberalismo, nem socialismo. A ideologia mais popular na Europa actualmente é o dependentismo. O que é o dependentismo?

Antes de explicar o que é o dependentismo deixem-me que lhes conte a história de Sandra. Ou de Sabrina. Ou de Sofia. Nomes falsos por que a história verdadeira de uma jovem espanhola chegou recentemente aos jornais: de cima dos seus quase trinta aninhos, a nossa jovem acabou de conseguir que um tribunal obrigue o seu pai a pagar-lhe uma bem simpática mesada durante mais dois anos. Com a possibilidade de esse período ser alargado caso a dita jovem não consiga terminar até lá a licenciatura em psicologia que iniciou há largo tempo. A nossa jovem, ou melhor dizendo a nossa adulta que se recusa a deixar de ter vida de adolescente, é saudável, nasceu na classe média e nada a não ser a sua vontade ou falta dela a impediu de terminar o curso em seu devido tempo. Mas o tribunal que julgou a sua acção contra o pai considera que hoje em dia é penosa a integração dos jovens no mercado de trabalho

Qual Podemos de Pablo Iglesias ou Frente Nacional de Marine Le Pen, o nosso verdadeiro terramoto político está nas mãos destes cidadãos nascidos nos anos 80 e 90 do século passado. Ao contrário das gerações anteriores que queriam ser independentes, estes jovens que há alguns anos seriam adultos lutam para ser materialmente dependentes. Por agora exigem aos pais que os sustentem. Amanhã exigirão a mesada a quem? Não são doentes e a avaliar pelas mesadas que reivindicam em tribunal não provêm de meios pobres. São oficialmente estudantes embora da maior parte não se possa dizer que estuda de forma regular. Alegam que não conseguem encontrar trabalho compatível com as habilitações de que se acham munidos e enquanto não cair do céu o lugar para que se acham dotados consideram que os pais têm de os sustentar nessa condição de estudantes mesmo que ocasionais.

A isto junta-se que a lei é omissa no que respeita ao limite de idade para se viver de uma mesada paterna pelo que não é de estranhar que dentro de alguns anos tenhamos quarentões neste grupo de indignados.

Quase sem darmos por isso, o legislador imaginou-se “grande educador” e instalou-se na relação que pais e filhos mantêm. E agora os tribunais sentem-se competentes para dizer a um pai que tem de sustentar um filho que é maior para tudo menos para trabalhar. Criámos leis e direitos contraditórios entre si e sem qualquer adesão à realidade: os mesmos pais a quem os tribunais, sobretudo em Espanha, criam a responsabilidade de continuar a sustentar filhos de 30 anos, apesar de estes serem saudáveis, são os mesmos pais a quem esses filhos já não ajudaram nas mais prosaicas tarefas domésticas porque havia o risco de tal ser considerado trabalho infantil.

A desautorização das famílias criou monstros legais como a britânica Cinderella Law que visa criminalizar a falta de manifestações de afecto dos pais para com os filhos, o que permite todo o tipo de arbítrios e subjectividades. Ou as chamadas “leis da palmada” que, visando combater os maus tratos às crianças, optam não por prevenir esses maus tratos, nomeadamente através de um acompanhamento mais eficaz das crianças que se suspeita poderem ser vítimas deles, mas sim por transformar a mais simples repreensão num caso de polícia.

Toda esta parafernália legislativa dos últimos anos, em que o Estado se assume como um bom educador por oposição às famílias, sempre vistas como ignorantes, não protegeu mais as crianças que precisavam de ser protegidas daqueles pais que excepcionalmente as maltratam. Mas acabou claramente a desautorizar a generalidade dos pais, ou seja, aqueles que se esforçam por tratar o melhor possível os seus filhos.

Há algo de disfuncional na relação que se criou com esta geração que em vários países europeus vai ao médico pediatra até aos 18 anos, mas que pode abortar a partir dos 16 sem que os seus pais sejam sequer informados. Mas se isto é válido para a perspectiva dos pais, ou se quisermos das gerações mais velhas, do ponto de vista dos filhos o resultado é bem mais complexo: criados numa concepção de direito a isto e àquilo, foram imbuídos de que o simples acto de nascer os revestia de vários direitos materiais.

Quanto a deveres, a simples enunciação desta palavra podia causar-lhes traumas vários. Enfim, desde que não se drogassem e fossem cumprindo as etapas da vida escolar já reuniam os requisitos básicos para serem considerados exemplares. Agora muitos já nem esse mínimo se sentem obrigados a cumprir e, quando se esperaria que, pelo menos uma vez adultos, trabalhassem, antes pelo contrário seguem para tribunal reivindicando que os pais os continuem a sustentar. E o legislador, sempre na senda iluminista de levar por força de lei o povo a viver a revolução que não escolheu, vai avalizando os argumentos do dependentismo.

O dependentismo, ou seja a convicção de que os nossos direitos materiais têm de ser garantidos independentemente da possibilidade de serem custeados ou de representarem um abuso sobre aqueles que têm de os custear, é hoje a ideologia mais popular na Europa.

Visto assim sob a perspectiva de uns meninos quase trintões que querem continuar no seu viver de estudante – se fosse agora, as tias do Vasquinho acabavam condenadas em tribunal e ele nunca dissertaria sobre o mastoideu no exame de Anatomia – é fácil caricaturizar o dependentismo. Mas pensemos na recente greve dos pilotos da Air France, na resistência às reformas empreendidas pelos governos italiano e belga, na língua de pau do Tribunal Constitucional em Portugal e confrontamo-nos com versões institucionais do dependentismo, essa ideologia cujo programa se resume a três pontos: “Para mim, deveres poucos ou nenhuns. Direitos todos. Amanhã logo se vê.”

Parece uma coisa de crianças e em parte é. Afinal o dependentismo infantilizou os europeus. Estes, sempre tão disponíveis para se deixarem enlevar por tudo aquilo que lhe parecesse uma vaga alternativa às suas democracias, não ficaram mais realistas após a queda do Muro de Berlim. Antes pelo contrário, os vendedores de utopias que por aí andam agora nem têm de se confrontar com o falhanço dos modelos alternativos.Valha a verdade eles também não defendem propriamente modelos alternativos de sociedade ou quando os defendem escondem-nos o suficiente porque sabem que ninguém quereria viver em tal inferno.

O que os infantilizados eleitores europeus querem não se distingue muito das exigências de mais mesada dos trintões espanhóis: afinal todos querem mais algum tempo de recreio. Se pudessem diziam como as crianças quando dantes brincavam na rua e as chamavam para ir jantar: “Já vou. Só mais um bocadinho!


Helena Matos


Publicado em O Observador  (10-Novembro-2014)




quinta-feira, 3 de maio de 2018

Encontros e despedidas no português de Portugal (Miguel Esteves Cardoso)


Passou bem? é uma crónica de Miguel Esteves Cardoso, publicada no jornal Público, do dia 15/06/2015 e lida por mim em Ciberdúvidas.


Passou bem?

Os encontros e as despedidas portuguesas são difíceis. Já não me queixo apenas do «tudo bem?». Quando é que tudo está bem? Nunca.

Gosto da economia e da beleza de «então?» mas quase ninguém gosta de usar uma só palavra.

As pessoas da minha geração perguntam «como está?» ou «está boa?» ou «está bom?».

Todas estas expressões são frustrantes e suspeitas, já que não escondem o automatismo da boa educação.

Para a geração dos meus pais era mais simples e mais bonito. Quando se encontravam, perguntavam «passou bem?» e, quando se despediam, exortavam «passe bem!».

Nesses tempos que até agora (por alguma razão muito boa) até um aperto de mãos, entendido como a garantia de uma amizade ou de um contrato, era conhecido como um «passou bem».

Passar e andar eram – e continuam a ser – os verbos da vida boa e bem vivida.

Quando alguém se atreve (com razão) a responder ao «passou bem?» com um «mal...» recebe logo a resposta certa: «isso é que é pior...»

Se responder (com ou sem razão) que «se vai andando», é imediatamente recompensado com um «isso é que é preciso».

«Passou bem?/passe bem!» é a melhor e a mais elegante combinação de verbos e advérbios.

Os encontros e as despedidas portugueses, à medida que vamos envelhecendo e vão nascendo e morrendo mais pessoas próximas de nós, vêem-se brutalmente acompanhadas pelas mais básicas, ordinárias e vulgarmente entediantes expressões.

«Passou bem?» e «passe bem» são, com certeza, a nossa mais simples salvação.

Sim. São.

Miguel Esteves Cardoso


Fonte:
Crónica de Miguel Esteves Cardoso publicada com o título Passou bem? no jornal Público, em 15/06/2015. Texto escrito, e publicado, segundo a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida pelo diário português.



quarta-feira, 2 de maio de 2018

Maio de 68 (Vasco Graça Moura)

Alfama 1968. Fotografia de Eduardo Gageiro



MAIO DE 68

um belo dia em maio
de sessenta e oito, tempo
feito de equívocos,
em alfama, as vizinhas conversavam.

a roupa secava ao sol.
os filhos estavam na escola.
elas falavam dos maridos.
e comentavam luísa, a

apanhadora de malhas em meias,
com o marido fora há dez anos,
sem dar notícias. tinha havido
desordens entre quatro

homens daquele bairro, por causa
de luísa, que os
ignorou e continuava a
cuidar do filho e a

apanhar malhas, sossegadamente,
na janela do rés-do-chão,
inclinando a cabeça como
a rendilheira de vermeer.

estavam as vizinhas
nisto, deplorando
o desperdício da
juventude de luísa,

por absurda esperança e
por delicadeza
assim perdendo a vida, quando
se aproximou um estranho.

deitam-se a adivinhar.
aquele bem podia ser fernando,
marido de luísa
e alvoroçaram-se e um cão ladrou.

no beco, entre
os potes de sardinheiras
e a roupa ainda a secar,
estavam estagnadas, mas

tinham razão num ponto:
era um marinheiro grego,
exausto, ainda a ofegar,
depois de uma cena de porrada

das antigas, que não tinha
nada a ver com luísa,
mas que se
chamava odisseus.

Vasco Graça Moura


Lido em Hospedaria Camões


Em Lisboa, sobre o mar: Poesia 2001-2010 [de Laocoonte, rimas várias, andamentos graves], org. de Ana Isabel Queiroz, Luís Maia Varela e Maria Luísa Costa, Fabula Urbis, Lisboa, 2013.