sexta-feira, 23 de março de 2018

A Acácia Vermelha (Manuel Poppe)

Acácias na Guiné-Bissau (Fotografia de Michele D'Amico)


A ACÁCIA VERMELHA

Foi por pouco tempo. Um mês. Lembro-me de quando me apareceu, a rir-se, à procura de trabalho. Eu viera contratado para verificar as condutas de água que abasteciam a capital. Era um país do golfo da Guiné, muito pobre e com dificuldade em organizar-se depois da independência. Perguntei-lhe:

- O que é que sabes fazer?
- Tudo – respondeu-me, às voltas com o corpo, que balanceava, livre, as mãos agarradas à boca.
- Como é que te chamas?
- Ednilza.

Acertámos o preço e ficou a trabalhar em minha casa. Chegava às seis da manhã – todos se levantavam cedo – e ia-se embora ao pôr-do-sol, quando eu a levava no jeep, carregado de sacos, os restos do dia. Atravessávamos a cidade às escuras e subíamos uma rua íngreme de terra batida, onde havia pequeninas bancas, iluminadas por candeias improvisadas, de lata.

- É ali – dizia.

E entrávamos no atalho. Ficava a dizer-me adeus, junto às escadas que davam para o único andar da casa de madeira assente em barrotes e com um telhado de zinco amolgado. Era um vulto, no meio do mato, com o vestido branco e o lenço amarelo. Os coqueiros agitavam-se, em volta, e luzes brilhavam, por detrás das cortinas de pano.

Um dia, apareceu-me com a irmã e uma sobrinha.

- O doutor não precisa?...

Por que não? A vivenda que eu alugara era grande, quartos amplos, abertos sobre um jardim com mangueiras, bananeiras, goiabeiras, e eu gostava de a sentir habitada, a ouvir o mar, em frente. Mas foi sempre ela quem me serviu e reservou isso para si, a preocupação com a minha saúde, com o meu bem-estar.

Uma vez, disse-me:

- O doutor não gosta de mim…
- O quê?

Aquela era a hora em que eu costumava sentar-me, na varanda, a olhar para o jardim e a ver cair a noite. O crepúsculo chegava devagarinho, as mangueiras escureciam, com a folhagem densa, a caramboleira deixava o dourado dos frutos.

- Gosta de mim?
- Claro que gosto!

Nunca tinha pensado nisso. Agarrei-lhe a mão húmida e puxei-a.

- Não acreditas?

Ela deixou-se estar e, depois, libertou-se. Ficou parada, entre cá e lá, encostada à balaustrada, com as pernas cruzadas. Demorou. Não tirava os olhos de mim. Era muito forte o olhar e desviei o meu.

Passaram os dias. Até que aconteceu. Tinha ido ao sul da ilha e voltei tarde, já de noite. Vi-a enforcada, presa de um braço de mangueira. Chamei os polícias, que a levaram, um corpinho exil, com as pernas esticadas e o peito rígido a levantar-lhe a camisa.

Em frente do escritório da minha casa, havia uma acácia vermelha, que floriu, nessa altura.

Eu vi-a, julgava vê-la passar, por debaixo da árvore. Às vezes, parecia que se virava para a janela.

- Tão elegante… - pensava.

A minha cozinheira apanhou-me assim e desabafou:

- Nunca lhe contaram? Ela foi uma infeliz. Andou, sem eira nem beira, desde que nasceu! O pai? Não quis saber dela, tinha mais filhos e outras mulheres. A mãe? Aguentou, enquanto pôde. Também tinha outros. Não sabe como é? Ela é que foi à vida. Aprendeu depressa. Mas isso era o menos. O pior era o resto. Nunca os viu? O que é que o doutor andou cá a fazer? Só as minas? Só a casa? Os criados? Nós!... A varanda? Nunca os viu, os brancos, que voltaram, a pagar, a pagar! A enchê-las de roupas, e a aproveitarem-se. A comprarem. Não as deitam fora. Têm dinheiro: usam-nas e até as protegem. Dão-lhes de comer. Depois, esquecem. Elas é que sofrem. Ela é que sofreu. A sua! Passou de mão em mão.

A raiva sufocava-a.

- Compraram tudo…
- Ela? Qual?
- A que o doutor não quis.

E troçou:

- O doutor andou sempre distraído…

Não sabia responder-lhe. A verdade é que não tinha querido nada. Viera por pouco tempo. Percebera depressa que aquilo era um pântano, lama a sujar a beleza da ilha. O hotel, a cair de podre, o bar do Alípio, com o gerador que dava cabo dos ouvidos, os mosquitos e aquela gente, que dizia que ajudava e sugava, grosseira, agressiva. Ainda hoje, passados tantos anos, os vejo: suados, as camisas abertas, a encostarem-se uns aos outros. E, de repente, levantavam-se, metiam-se nos carros, e iam desenfreados, pelas escadas esburacadas, até se cansarem e se abraçarem e rebolarem nas praias. Pensei, sempre, que estavam a mais, que nunca viram nada. Contaram-me coisas, a tentarem envolver-me.

- Na despedida do Bidarra, tiraram-lhe a língua para fora. Estava tudo bêbado! O “macaco” pendurou-se do candeeiro! Felizmente, agarraram-no a tempo…

Eu conhecia o “macaco”: era um mestiço, que a colónia europeia tolerava. Quando nos cruzávamos, eu desviava os olhos: custava-me o seu ressentimento, o desespero de andar na cola dos brancos. Diziam que era filho de um roceiro, que o empregara como capataz.

Quantas vezes fugira daquele mundo infectado e me refugiara na vivenda! Onde a encontrava.

- O doutor já tomou o remédio?

Eram as pílulas para a malária, trazia-mas num tabuleiro leve, quase uma folha, equilibrado nas mãos pequeninas, seguro pelos dedos magros, doirado, com figuras geométricas de madeira preta, e olhava-me, à espera. Depois, girava, a saia de popelina a roçar-lhe os joelhos, os olhos a brilharem, e dizia, contente:

- O doutor esquece-se sempre…

Agora, a minha cozinheira gorda, de quem nunca esquecerei os olhos vivos, acusava-me.

- O doutor deixou-a sozinha.

Acabada a missão, fui-me embora. Às vezes, lembro-me de Ednilza, no meio das árvores, a dizer-me adeus. E , à noite, oiço os coqueiros, quando o vento sopra.

Manuel Poppe


Para saber de Manuel Poppe.



quarta-feira, 21 de março de 2018

Ferreira Gullar para o Dia Mundial da Poesia

Fotografia de Anna Paula Carvalho


Hoje temos dois poemas para o Dia Mundial da Poesia, que se celebra a 21 de março. Depois de Miguel Torga, português, Ferreira Gullar, brasileiro.


DOIS E DOIS: QUATRO

Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena

Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena

como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

–sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro
e a liberdade pequena.

Ferreira Gullar


Dentro da noite veloz (1962-1975)




Um poema de Miguel Torga para o Dia Mundial da poesia




Publicado em Biblioteca de Palmeira em março de 2010.





segunda-feira, 19 de março de 2018

Manucure (Mário de Sá-Carneiro)

Retrato de Mário de Sá-Carneiro, Júlio Pomar, 2014-2015



MANUCURE

Na sensação de estar polindo as minhas unhas,
Súbita sensação inexplicável de ternura,
Tudo me incluo em Mim – piedosamente.
Entanto eis-me sozinho no Café:
De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.
De volta, as mesas apenas – ingratas
E duras, esquinadas na sua desgraciosidade
Bocal, quadrangular e livre-pensadora...
Fora: dia de Maio em luz
E sol – dia brutal, provinciano e democrático
Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos
Nem podem tolerar – e apenas forcados
Suportam em náuseas. Toda a minha sensibilidade
Se ofende com este dia que há-de ter cantores
Entre os amigos com quem ando às vezes –
Trigueiros, naturais, de bigodes fartos –
Que escrevem, mas têm partido político
E assistem a congressos republicanos,
Vão às mulheres, gostam de vinho tinto,
De peros ou de sardinhas fritas...
E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas
E de as pintar com um verniz parisiense,
Vou-me mais e mais enternecendo
Até chorar por Mim...
Mil cores no Ar, mil vibrações latejantes,
Brumosos planos desviados
Abatendo flechas, listas volúveis, discos flexíveis,
Chegam tenuamente a perfilar-me
Toda a ternura que eu pudera ter vivido,
Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,
Todos os cenários que entretanto Fui...
Eis como, pouco a pouco, se me foca
A obsessão débil dum sorriso
Que espelhos vagos reflectiram...
Leve inflexão a sinusar...
Fino arrepio cristalizado...
Inatingível deslocamento...
Veloz faúlha atmosférica...

E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço
Por inúmeras intersecções de planos
Múltiplos, livres, resvalantes.

É lá, no grande Espelho de fantasmas
Que ondula e se entregolfa todo o meu passado,
Se desmorona o meu presente,
E o meu futuro é já poeira...

Deponho então as minhas limas,
As minhas tesouras, os meus godets de verniz,
Os polidores da minha sensação –
E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!
Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta,
Varar a sua Beleza – sem suporte, enfim! –
Cantar o que ele revolve, e amolda, impregna,
Alastra e expande em vibrações:
Subtilizado, sucessivo – perpétuo ao Infinito!...

Que calotes suspensas entre ogivas de ruínas,
Que triângulos sólidos pelas naves partidos!
Que hélices atrás dum voo vertical!
Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténis! –
Que loiras oscilações se ri a boca da jogadora...
Que grinaldas vermelhas, que leques, se a dançarina russa,
Meia nua, agita as mãos pintadas da Salomé
Num grande palco a Oiro!
– Que rendas outros bailados!

Ah! mas que inflexões de precipício, estridentes, cegantes,
Que vértices brutais a divergir, a ranger,
Se facas de apache se entrecruzam
Altas madrugadas frias...
E pelas estações e cais de embarque,
Os grandes caixotes acumulados,
As malas, os fardos – pêle-mêle...
Tudo inserto em Ar,
Afeiçoado por ele, separado por ele
Em múltiplos interstícios
Por onde eu sinto a minh'Alma a divagar!...

– Ó beleza futurista das mercadorias!

– Sarapilheira dos fardos,
Como eu quisera togar-me de Ti!
– Madeira dos caixotes,
Como eu ansiara cravar os dentes em Ti!
E os pregos, as cordas, os aros... –
Mas, acima de tudo,
Como bailam faiscantes,
A meus olhos audazes de beleza,
As inscrições de todos esses fardos –
Negras, vermelhas, azuis ou verdes –
Gritos de actual e Comércio & Indústria
Em trânsito cosmopolita:

FRÁGIL! FRÁGIL!

843 – AG LISBON

492 – WR MADRID

Ávido, em sucessão da nova Beleza atmosférica,
O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la À minha volta. E a que mágicas, em verdade, tudo baldeado
Pelo grande fluido insidioso,
Se volve, de grotesco – célere,
Imponderável, esbelto, leviano...
– Olha as mesas... Eia! Eia!
Lá vão todas no Ar às cabriolas,

Em séries instantâneas de quadrados
Ali – mas já, mais longe, em losangos desviados...
E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,
E misturam-se às mesas as insinuações berrantes
Das bancadas de veludo vermelho
Que, ladeando-o, correm todo o Café...
E, mais alto, em planos oblíquos,
Simbolismos aéreos de heráldicas ténues
Deslumbra m os xadrezes dos fundos de palhinha
Das cadeiras que, estremunhadas em seu sono horizontal,
Vá lá, se erguem também na sarabanda...

Meus olhos ungidos de Novo,
Sim! – meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas,
Não param de fremir, de sorver e faiscar
Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea,
Toda essa Beleza-sem-Suporte,
Desconjuntada, emersa, variável sempre
E livre – em mutações contínuas,
Em insondáveis divergências...
– Quanto à minha chávena banal de porcelana?

Ah, essa esgota-se em curvas gregas de ânfora,
Ascende num vértice de espiras
Que o seu rebordo frisado a oiro emite...

É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!...

...Dos longos vidros polidos que deitam sobre a rua,
Agora, chegam teorias de vértices hialinos
A latejar cristalizações nevoadas e difusas.
Como um raio de sol atravessa a vitrine maior,
Bailam no espaço a tingi-lo em fantasias,
Laços, grifos, setas, ases – na poeira multicolor –.

Mário de Sá-Carneiro

Poemas Dispersos, Lisboa, Maio de 1915





quinta-feira, 15 de março de 2018

Que escada de Jacob (Ana Luísa Amaral)





QUE ESCADA DE JACOB?

A meu pai (23 de Dezembro de 2002)


Na noite em que a lua foi pisada pela primeira vez,
ainda a preto e branco a sua imagem,
escafandros brancos, o reflexo do sol nas lentes baças,
a escada que descia, o pó sem gravidade que a bota levantou,
tão branco e mágico,
nessa magia de duas da manhã, hora local, daqui,
estavas comigo.

Comemos sopa às quatro da manhã,
e eu vejo ainda aquela sala, a mesa lá ao fundo,
o sofá grande, e eu de onze anos a sentir-me grande,
porque assim me fazias e falavas.
A lua a ser pisada: humana condição
pela primeira vez.

No dia em que as ciências em exame mais longo se faziam,
eu sem saber o grau das equações, que incógnitas havia
a resolver, era verão e o sol do lado esquerdo,
à esquerda da imagem tripartida à minha frente,
teimando-me a ignorância,
nessa angústia menor de três da tarde,
sabia-te sentado atrás de mim, na carteira de trás,
à espera, atravessado de nervos e ternura.

Passei. E eu vejo ainda o teu sorriso,
o pó sem gravidade no olhar, e eu, quinze anos a sentir-me grande,
porque assim me parecia.
Uma galáxia à solta pelo corpo e o calor do sol
tão transparente.

No dia em que o meu corpo se atravessou de nova dor,
quase rasgado a meio, a luz do sol entrando
pela janela antiga, os tectos altos, brancos,
batas como escafandros,
nesse dia tão longo em que o sol caminhou até ao fim,
para do fim nascer, estiveste sempre lá.

Vejo-te ainda encostado à ombreira dessa porta alta,
a voz dos escafandros tentando sossegar-te,
e tu, a soluçar baixinho, retalhado entre amor
e alegria.

Na noite em que a lua te deixou,
em que deixaste de sentir a sua luz, o mais trémulo toque, tudo
o que assim nos faz: frágil, imensa, humana condição,
na noite dos fantasmas e escafandros cinzentos,
eu não estava contigo.

A que sabia a sopa que comemos?
Que escada de Jacob?

Ana Luísa Amaral


(Ouvimos o poema dito pela própria autora em lyrikline)


Ana Luísa Amaral lerá hoje os seus versos na Aula de Poesía Enrique Díez-Canedo, de Badajoz.





segunda-feira, 12 de março de 2018

Um pouco só de Goya: Carta a minha filha (Ana Luísa Amaral)



Ana Luísa Amaral, lerá os seus versos na Aula de Poesía Enrique Díez-Canedo, de Badajoz, nesta quinta-feira, dia 15.


Hoje ouvimos, na voz da própria Ana Luísa Amaral, o seu poema Um pouco só de Goya: Carta à minha filha:


UM POUCO SÓ DE GOYA: CARTA A MINHA FILHA

Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?
Eras pequena e o cabelo mais claro,
mas os olhos iguais. Na metáfora dada
pela infância, perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e de quem se seguia
e porque se seguia, ou da total ausência
de razão nessa cadeia em sonho de novelo.

Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se
de junho, o teu cabelo claro mais escuro,
queria contar-te que a vida é também isso:
uma fila no espaço, uma fila no tempo
e que o teu tempo ao meu se seguirá.

Num estilo que gostava, esse de um homem
que um dia lembrou Goya numa carta a seus
filhos, queria dizer-te que a vida é também
isto: uma espingarda às vezes carregada
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te
testamentos, falar-te de tigelas - é sempre
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua
de mentiras, em carinho de verso.

E o que queria dizer-te é dos nexos da vida,
de quem a habita para além do ar.
E que o respeito inteiro e infinito
não precisa de vir depois do amor.
Nem antes. Que as filas só são úteis
como formas de olhar, maneiras de ordenar
o nosso espanto, mas que é possível pontos
paralelos, espelhos e não janelas.

E que tudo está bem e é bom: fila ou
novelo, duas cabeças tais num corpo só,
ou um dragão sem fogo, ou unicórnio
ameaçando chamas muito vivas.
Como o cabelo claro que tinhas nessa altura
se transformou castanho, ainda claro,
e a metáfora feita pela infância
se revelou tão boa no poema. Se revela
tão útil para falar da vida, essa que,
sem tigelas, intactas ou partidas, continua
a ser boa, mesmo que em dissonância de novelo.

Não sei que te dirão num futuro mais perto,
se quem assim habita os espaços das vidas
tem olhos de gigante ou chifres monstruosos.
Porque te amo, queria-te um antídoto
igual a elixir, que te fizesse grande
de repente, voando, como fada, sobre a fila.
Mas por te amar, não posso fazer isso,
e nesta noite quente a rasgar junho,
quero dizer-te da fila e do novelo
e das formas de amar todas diversas,
mas feitas de pequenos sons de espanto,
se o justo e o humano aí se abraçam.

A vida, minha filha, pode ser
de metáfora outra: uma língua de fogo;
uma camisa branca da cor do pesadelo.
Mas também esse bolbo que me deste,
e que agora floriu, passado um ano.
Porque houve terra, alguma água leve,
e uma varanda a libertar-lhe os passos.

Ana Luísa Amaral


“Um pouco só de Goya: Carta a minha filha” in Imagias, Gótica (2002)


"Carta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya", de Jorge de Sena.
.


quinta-feira, 8 de março de 2018

Mulher (Ary dos Santos)



Poema do poeta português Ary dos Santos, dedicado para todas as meninas


MULHER

A mulher não é só casa
mulher-loiça, mulher-cama
ela é também mulher-asa,
mulher-força, mulher-chama

E é preciso dizer
dessa antiga condição
a mulher soube trazer
a cabeça e o coração

Trouxe a fábrica ao seu lar
e ordenado à cozinha
e impôs a trabalhar
a razão que sempre tinha

Trabalho não só de parto
mas também de construção
para um filho crescer farto
para um filho crescer são

A posse vai-se acabar
no tempo da liberdade
o que importa é saber estar
juntos em pé de igualdade

Desde que as coisas se tornem
naquilo que a gente quer
é igual dizer meu homem
ou dizer minha mulher




segunda-feira, 5 de março de 2018

Carta de Manuel António Pina a alunos do EPE em França


Coordenação de Ensino Português no Estrangeiro

Compete ao Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, I.P. coordenar a atividade dos docentes de língua e cultura portuguesas no estrangeiro e promover a interação entre os vários níveis e modalidades de ensino e fomentar o ensino do português como língua não materna e estrangeira nos curricula e sistemas de ensino, designadamente em países com comunidades de língua portuguesa.

Com sede em Embaixadas e Consulados portugueses, as Coordenações de Ensino Português, ao serviço direto dos docentes da rede de Ensino de Português no Estrangeiro são, também, espaços de apoio logístico ao ensino da língua e cultura portuguesas.



quinta-feira, 1 de março de 2018

Acordo ortográfico e Parlamento


Fotografia de Sara Santos no Observador


Uma decisão para lamentar
(Luís Menezes Leitão - Jornal i, 27/02/2018)

O acordo ortográfico contribui para abolir as variantes cultas das palavras e as suas ligações etimológicas. A língua portuguesa torna-se mais pobre e distante das suas raízes, transformando-se num idioma de laboratório

A semana passada foi marcada pela rejeição, pelo parlamento, da proposta do PCP de abandono do acordo ortográfico. Trata-se de decisão que demonstra bem a insensibilidade dos nossos deputados, uma vez que, perante o desastre que está a ser a aplicação deste acordo, o parlamento prefere ignorar o que se está a passar, assistindo pacificamente à destruição total da língua portuguesa. Porque de facto, com este acordo ortográfico, o português europeu está a transformar-se num estranho dialecto, com regras escritas incompreensíveis, que se afastam da sua etimologia e das restantes línguas latinas. Com a agravante de nem sequer haver qualquer uniformização com os outros países de língua portuguesa que ou não aplicam o acordo ou do mesmo resulta que sigam regras diferentes, graças à pronúncia que utilizam.

Um bom exemplo disto resulta da recente tradução do livro da escritora argentina María Gainza, que em espanhol se chama “El nervio óptico”, mas que no português acordista se transforma em “O Nervo Ótico”. O problema é que sempre se utilizou na língua portuguesa a expressão “ótico” como relativa ao ouvido, reservando-se o termo “óptico” para a visão. Tal é o significado dos respectivos antecedentes gregos “otikos” e “optikos”. O acordo ortográfico aboliu esta distinção essencial, mas apenas no português de Portugal, continuando a distinção a existir no português do Brasil. Será que isto faz algum sentido?

E o mesmo sucede com outras palavras como “recepção”, “concepção”, que se conservam sem alterações na ortografia brasileira, mas que na portuguesa passam a “receção” e “conceção”, facilmente confundíveis com “recessão” e “concessão”. Qual a necessidade de abolir a grafia anterior se o que se consegue é criar uma ortografia que ainda mais se diferencia da dos outros países lusófonos?

Isto já para não falar da multiplicação dos erros de escrita que o acordo ortográfico causou, com a absurda directriz de querer abolir as consoantes mudas, estando muita gente a abolir consoantes que continuam a pronunciar--se. É assim que já se viu aparecer erros como “fato”, “ineto”, “corruto”, que demonstram bem a falta de critério na abolição das consoantes pretensamente mudas.

E por último deveria salientar-se o facto de o acordo ortográfico contribuir para levar à abolição das variantes cultas das palavras e às ligações etimológicas das mesmas. Assim, a expressão culta “ruptura”, mais próxima do latim, foi transformada em “rutura”, esquecendo-se que já existia a variante popular “rotura”. Fala-se em “ótico” para a visão, mas esquece-se que a medição da mesma continua a ser a “optometria”. E os egípcios, pelos vistos, passaram agora a viver no “Egito”, esquecendo-se que a palavra Egipto tem origem no deus Ptah que, que se saiba, ainda não passou a Tah. Com o acordo ortográfico, a língua portuguesa torna-se assim mais pobre e distante das suas raízes, transformando-se num idioma de laboratório.

Na banda desenhada “Spirou e Fantásio”, da autoria de Franquin, aparece um vilão chamado Zorglub que pretende criar uma ditadura alterando o cérebro das pessoas, o que as faz falar e escrever numa nova língua, a zorglíngua, em que todas as palavras surgem ao contrário. Esperava-se que um parlamento democrático, como o português, nos livrasse deste triste destino. Mas afinal, graças aos restantes partidos, com excepção do PCP, vai tudo continuar como dantes. Isto não foi uma decisão parlamentar, foi uma decisão para lamentar.

Luís Menezes Leitão 

(Jornal i, 27/02/2018)


"Parlamento discute saída de Portugal do Acordo Ortográfico"
(Observador, 21/2/2018)
O Parlamento discute na tarde desta quarta-feira uma petição e uma proposta do PCP relativa à saída de Portugal do Acordo Ortográfico.