segunda-feira, 6 de março de 2017

Os comboios que vão para Antuérpia (Herberto Helder)



Em janeiro eu estava em Bruxelas, nos subúrbios, numa casa sobre a linha férrea. Os comboios faziam estremecer o meu quarto. Fora-se o natal. Algo desa­parecera, uma coisa ingénua em que se poderia ter confiado. Talvez a esperança. Eu não tinha dinheiro nem livros nem cigarros. Não tinha trabalho nem ócio, por­que estava desesperado. Por isso passava o dia e a noite no quarto. Na linha em baixo rangiam e apitavam comboios que talvez fossem para Antuérpia. Eu pen­sava em Deus quando os comboios trepidavam nos carris e apitavam tão perto de mim. Quando iam pos­sivelmente a caminho de Antuérpia. Pensava nos com­boios como quem pensa em Deus: com uma falta de fé desesperada. Pensava também em Deus — um com­boio: algo que sem dúvida existe, mas é absurdo, que parte com um destino indefinido: Antuérpia — que pos­sivelmente (evidentemente) não era.

Às vezes vinha à janela e, por detrás dos vidros, olhava para o caminho de ferro. Mas antes de lá chegar os meus olhos encontravam uma árvore esquisita — tímida mas tenazmente viva — num quintal próximo. Esta árvore metia medo: era como a esperança em mim mesmo, ou uma ainda mais ambiciosa aposta: a fé do­lorosamente contraditória nos homens. Nos homens? Há em mim todas as virtudes da confiança, mas sou um desesperado. Apesar de tudo também sou um ho­mem. Tenho capacidades de amor. Amo a minha seme­lhança com todos os homens, mas desespero nesse mesmo amor. Estou fechado num quarto. Nem posso fumar. Não posso descansar. Imagino que se consiga partir de Antuérpia depois de lá chegar num desses comboios rangentes. Antuérpia não é um sítio final. É uma cidade como as outras: com bares e nevoeiros, o silêncio, as pessoas, as vozes, a matemática impe­netrável das suas multiplicações e desmultiplicações, e o fluxo e refluxo das imagens. Em Antuérpia há pros­titutas, há um calor humano degradado, a embriaguez. Lá também se morre. Talvez alguém tenha um dia res­suscitado em Antuérpia. Não sei.

O lugar em que penso é difícil, sempre difícil.

Ao norte existe o rio Escalda. De lá se parte, che­ga-se ao mar. Já me disseram que a gente que nasce e vive ao pé do mar é mais pura. Penso que o mar dá uma qualidade especial à fantasia, ao desejo e à confi­ança. É uma propriedade misteriosa do espírito, e por ela se aprende a nada esperar, a não desesperar de nada. Talvez seja isso a inocência. Talvez só no mar nos seja concedido morrer verdadeiramente, morrer como nenhum homem pode.

Esta minha vida de agora é circular e eu sufoco, sem dela poder sair, com o deus que lá existe, com Deus, com Deus... Comboios que não param de ranger e apitar. Comboios que partem. Durante a noite acordo muitas vezes com Deus a apitar. Mas de manhã a mi­nha falta de fé parece ainda maior e compreendo que nunca hei-de sair deste quarto e que os comboios são simples pensamentos, como Antuérpia, uma inspiração difusa, confusa.

Talvez pudesse ouvir passos junto à porta do quar­to, passos leves que estacariam enquanto a minha vida, toda a vida, ficaria suspensa. Eu existiria então vaga­mente, alimentado pela violência de uma esperança, preso à obscura respiração dessa pessoa parada. Os comboios passariam sempre. E eu estaria a pensar nas palavras do amor, naquilo que se pode dizer quando a extrema solidão nos dá um talento inconcebível. O meu talento seria o máximo talento do homem e devia reter, apenas pela sua força silenciosa, essa pessoa defron­te da porta, a poucos metros, à distância de um sim­ples movimento caloroso. Mas nesse instante ser-me-ia revelada a essencial crueldade do espírito. Penso que desejaria somente a presença incógnita e solitária des­sa pessoa atrás da porta. Ela não deveria bater, solici­tar, inquirir.

— Posso falar? Podemos falar?

O meu único alimento é o desespero. E é do cora­ção estéril que extraio toda a força: tenho confiança em que Deus está neste quarto, está na tão experiente ex­pectativa das tumultuosas passagens dos comboios.

O pensamento alude ao norte, a essa ideia que re­laciona o norte com o frio puro e a dramática alegria da neve, das temperaturas muito baixas. Alude também à viagem sem fé, inconsequente, feita com o inexpli­cável ardor de quem se inicia na eternidade.

Mas nem cigarros tenho. Estou possuído pelos dons infernais com que se cria um estilo sem tempo nem lugar, a fraternidade solitária, o amor sempre em viagem.

O meu gosto pela exactidão já sabe o horário dos comboios que possivelmente (evidentemente) nem vão para lá.

Deus principia a inspirar-me terror. A minha unida­de, sobretudo. A unidade fechada e imóvel. O universo passa bem sem mim, e o terror é uma inspiração sem mácula, dentro do que pode alcançar.

Não, não está ninguém junto à porta.

Herberto Helder

Os Passos em Volta (1963)