quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Criminosos de fraldas (Manuel António Pina)




CRIMINOSOS DE FRALDAS

Por algum motivo, uma das coisas que recordo das tardes de catequese do padre Janela é o “Acto de Contrição”. Apesar disso, e do admirável sucesso que por aí têm os arrependidos disto e daquilo, nunca fui dado ao arrependimento. Nem quando, aos 4 anos de idade, destravei o carro do pintor Túlio Vitorino, estacionado à porta de nossa casa e ele se espatifou contra a cerca do hospital, ou quando, pouco depois, destruí o relógio de meu pai para ver como funcionava. Talvez por ser fraco de pulmões, doía-me bater com a mão no peito, além de que me parecia inútil prometer “firmemente emendar-me” quando não tinha intenção alguma de o fazer. Descubro agora, por uma notícia do “Daily Mail”, que a minha sorte foi não ter nascido inglês: “A polícia da Grã-Bretanha investiga um menino de 3 anos por desordem e vandalismo (…). Um relatório da Polícia da Escócia revela outro caso envolvendo um menino de 3 anos, suspeito de vandalismo e comportamento indecente”. No que me toca, sem a atenuante do arrependimento, a história do carro e a do relógio (mais todas as que minha mãe contava) davam as galés pela certa.

Manuel António Pina


Publicado no Jornal de Notícias, 22 Sep 2009


Crónica, saudade da literatura. 1984-2012 (Manuel António Pina), Assírio & Alvim, 1ª edição, 2013.