quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

"Ah, como incerta, na noite em frente" (Fernando Pessoa)

Fotografia de Américo Mieira




Ah, como incerta, na noite em frente,
De uma longínqua tasca vizinha
Uma ária antiga, subitamente,
Me faz saudades do que as não tinha.

A ária é antiga? É-o a guitarra.
Da ária mesma não sei, não sei.
Sinto a dor-sangue, não vejo a garra.
Não choro, e sinto que já chorei.

Qual o passado que me trouxeram?
Nem meu nem de outro, é só passado:
Todas as coisas que já morreram
A mim e a todos, no mundo andado.

É o tempo, o tempo que leva a vida
Que chora e choro na noite triste.
É a mágoa, a queixa mal definida
De quando existe, só porque existe.

Fernando Pessoa


14-8-1932


Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990). - 86.