quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Unamuno (Miguel Torga)


O escritor espanhol Miguel de Unamuno morreu a 31 de dezembro de 1936 em Salamanca. Recordamo-lo aqui com este poema de Miguel Torga


UNAMUNO

D. Miguel…
Fazia pombas brancas de papel
Que voavam da Ibéria ao fim do mundo…
Unamuno Terceiro!
(Foi o Cid o primeiro,
D. Quixote o segundo.)

Amante duma outra Dulcineia,
Ilusória, também
(Pátria, mãe,
Ideia
E namorada),
Era seu defensor quando ninguém
Lhe defendia a honra ameaçada!

Chamado pelo aceno da miragem,
Deixava o Escorial onde vivia,
E subia, subia,
A requestar na carne da paisagem
A alma que, zeloso, protegia.

Depois, correspondido,
Voltava à cela desse nosso lar
Por Filipe Segundo construído
Com granito da fé peninsular.

E falava com Deus em castelhano.
Contava-lhe a patética agonia
Dum espírito católico, romano,
Dentro dum corpo quente de heresia.

Até que a madrugada o acordava
Da noite tumular.
E lá ia de novo o cavaleiro andante
Desafiar
Cada torvo gigante
Que impedia o delírio de passar.

Unamuno Terceiro!
Morreu louco.
O seu amor, por ser demais, foi pouco
Para rasgar o ventre da Donzela.
D. Miguel…
Fazia pombas brancas de papel,
E guardava a mais pura na lapela.

Miguel Torga


Do seu livro Poemas Ibéricos (1ªedição em 1965)




terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Momento (Jorge Barbosa)


Vista aérea de Praia, em Cabo Verde, cidade natal de Jorge Barbosa (Wikipedia)




MOMENTO

Quem aqui não sentiu
esta nossa
fininha melancolia?

Não a do tédio
desesperante e doentia,
Não a nostálgica
nem a cismadora.

Esta nossa
fininha melancolia
que vem não sei de onde.
Um pouco talvez
das horas solitárias
passando sobre a ilha
ou da música
do mar defronte
entoando
uma canção rumorosa
musicada com os ecos do mundo.

Quem aqui não sentiu
esta nossa
fininha melancolia?
a que suspende inesperadamente
um riso começado
e deixa um travor de repente
no meio da nossa alegria
dentro do nosso coração,
a que traz à nossa conversa
qualquer palavra triste sem motivo?

Melancolia que não existe quase
porque é um instante apenas
um momento qualquer.

Jorge Barbosa 

Jorge Barbosa (Praia/Cabo Verde, 1902 - Cova da Piedade/Almada, 1971) foi um escritor cabo–verdiano.

Colaborou em várias revistas e jornais portugueses e cabo–verdianos. A publicação de Arquipélago em 1935 foi um marco para o nascimento da poesia cabo-verdiana, e por isso é considerado o pioneiro da moderna poesia deste País, onde os problemas sociais e políticos passaram a constituir uma das grandes temáticas do escritor.

Jorge Barbosa escreveu ainda Ambiente (1941), Caderno de um Ilhéu (1955, Prémio Camilo Pessanha) e, na altura os proibidos, mas editados mais recentemente, Meio Milénio, Júbilo e Panfletário.


Mais poemas e dados sobre o autor em Lusofonia.







sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

A consoada (Carlos Lopes)




A consoada

As férias foram bem negociadas. Não é que ele propriamente dito precisasse de as negociar, como qualquer chefe. Felizmente tinha um emprego que lhe dava uma certa autonomia, que por acaso só servia para aumentar a carga horária, visto ser muito consciente das suas responsabilidades. Mas, negociadas foram, porque, dos cinco companheiros de viagem, três não beneficiavam dessas mesmas regalias e os outros dois, miúdos, dependiam do calendário escolar. Lá se foram todos, estrada fora, a enfrentar um caminho que se sabia difícil, porque as ligações rodoviárias entre Bissau e o Senegal não são fáceis.Ultrapassado o quilómetro 10, lá apareceu a primeira barreira de controlo. Um fiozinho esticado no meio da estrada, invisível mesmo, para quem não soubesse que aí se encontrava um vestígio arcaico do tempo da guerra. Uma casa rudimentar, coberta com folhas de zinco, com a tinta já a pedir nova lavagem, vários indivíduos com fardas multicolores desbotadas, camisa desapertada até meio do peito, sentados, olhando para o colega, mais à frente, que na berma da estrada franzia os olhos com o ar arrogante, tentando demonstrar o seu poder, que neste caso específico era o de fazer parar toda a gente com a desculpa de que se tratava de controlo alfandegário. Normalmente passavam todos os que deveriam ser controlados e eram revistados os pobres coitados. Depois foi Djugudul e quase sem parar depressa chegaram a Farim, a tempo de apanhar a jangada no lado de cá. Isto de jangadas é outra negociação. Quando se chega à margem, encosta-se o carro à direita, atrás dos que o precedem. Espera-se com impaciência e, quando a barcaça atraca, põe-se imediatamente o motor a trabalhar para evitar qualquer ultrapassagem indesejada. Há sempre uns senhores espertos, normalmente personalidades políticas, que tentam mostrar o seu estatuto não respeitando as filas. Depois, é a gincana, entre os passageiros a pé, a rampa que nunca fica presa e que com isso faz perder tempo. O motor da jangada que vai lutando contra a maré, e os sinaleiros voluntários que vão indicando para onde se devem mexer as rodas. Tudo isto no meio de um lodaçal e água a chapinar, quando a rampa se distancia mais do que o normal. As aventuras pareciam terminadas pelo menos até à fronteira do Senegal. Aí viveu-se uma outra experiência rotineira de controlo corriqueiro e corrupção amargurada. Se não fosse verdade, seria surrealista. Depois, descanso merecido em hotéis que até têm água quente, comida francesa, piscinas limpas e praias maravilhosas. Mas a negociação das datas obrigava o regresso antes do NatalE no regresso começaram as aventuras, desta feita altamente indesejadas. A primeira má notícia foi a de que a jangada de Farim estava avariada. Mais: avariada na outra margem do rio. Fazia já dois dias que não se observavam travessias. No pontão olhando para a multidão curiosa estavam vários carros de cidadãos urbanos que pareciam perdidos na aldeia adormecida. Uma coisa era certa: não havia como albergar tanta gente em Farim, embora não fossem muitos. Distinguia-se no quadro apocalíptico um Land Cruiser que parecia superequipado, de onde despontavam duas figuras "dandies", impecavelmente trajadas de branco, da cabeça aos pés, ou seja, do chapéu às sapatilhas. O casal, soube-se depois, era belga e estava a fazer uma travessia de África. Por isso, o incómodo da jangada parecia-lhes transponível. Perguntaram qual era o problema e parecia ser a falta de um pistão e óleo. Depressa saíram do armário ambulante os produtos desejados, que calmamente foram levados para a outra margem do rio por uma canoa. E começou a espera: uma, duas horas, e finalmente ouviu-se o ruído da jangada ao longe como que a brotar energia. Também foi sol de pouca dura. Apagou-se o sobressalto e da margem oposta só se moveu a canoa, de regresso com as más notícias. O pistão e o óleo não chegaram para acordar a barcaça moribunda. Com uma calma de fazer inveja, só possível de quem muito amor tem à África e de tudo neste mundo já viu, despontou um sorriso sereno e a demonstração da liderança. Era o belga que, depois de ter contado algumas das suas histórias do deserto, agora pacientemente explicava que a fronteira já tinha fechado, que o sol em breve desapareceria e que a única hipótese seria seguir por terra firme, contornando o rio para o atravessar na sua parte baixa, por caminhos que um seu mapa indicava. Os habitantes de Farim, que partilhavam estes momentos únicos, confirmavam a existência do tal caminho. Existia sim senhor, mas de certeza que por ali não passavam carros há muitos, muitos anos. Para os belgas não havia tempo a perder. Quem quisesse que viesse! Entre dormir ao relento, com miúdos, numa antevéspera de Natal, sem certeza de ter jangada no dia seguinte, e seguir "dandies" determinados que pareciam saber do que falavam, até ele, que era da terra, achou melhor a segunda hipótese.O caminho começou bem, mas depressa chegou a noite, e, como que milagrosamente desapareceu o caminho, mas os belgas sacaram de um potente holofote e continuaram a marcha por palhas altas, no que parecia já ser um caminho sim, mas de bicicleta. Atravessaram-se ribanceiras, pedregulhos e outros atropelos físicos, até mesmo um terreno cultivado. De vez em quando havia uma paragem, para que com o holofote determinasse exactamente por onde continuava esse caminho de bicicleta. Mas os belgas, com os seus dois instrumentos adicionais, o mapa e a bússola, continuavam imperturbados e sem perder o sorriso. Ele sabia-o, porque várias vezes pararam e com toda a graça os belgas ofereciam água gelada e outros brilharetes só possíveis com milagres: um carro diferente de todos os outros. E depressa se saberia que sim, diferente era, porque ele deixou de sentir a sua caixa de velocidades e percebeu que era o fim da linha. De facto, tinha-se partido qualquer coisa. Os miúdos já tinham deixado de resmungar. O cansaço transformou-se em sono. Todos hesitavam entre pensar em tudo o que já se tinha vivido na viagem ou imaginar que o melhor era chegar no dia seguinte a Bissau. Parecia já longínquo este pensamento. E foi com ele na mente que os homens da parada foram amarrando o veículo ferido ao brilhante Land Cruiser. Novas cruzadas, cordas rebentadas, atolanços desesperados, mas sempre energias renovadas para continuar a jornada. Até que 7 horas depois, em plena noite de luar, finalmente desponta um pedaço de estrada em terra batida que, nas circunstâncias vividas, parecia a auto-estrada de Manhattan. Os belgas tinham razão: com o holofote, bússola e mapa chegaram ao caminho de Contuboel.Acordar o pessoal do Centro de Formacção de Contuboel, àquela hora, parecia ser intimidatório, mas, quando o grupo se aproximou, ficou surpreendido com o enorme barulho de um baile que antecipava já o Natal. Felizmente. Conseguiu-se a desejada guarida, para os belgas e tudo. E no dia seguinte, depois de um acordar tardio, o almoço foi arroz branco com cavalas de conserva. Mas os simpáticos do centro ofereceram uma boleia até à cidade próxima de Bafatá para que se pudesse telefonar para Bissau a pedir socorro. Os belgas esses já não foram da companhia das cavalas, com certeza fartos dos dissabores impostos por nacionais pouco conhecedores da geografia local. Foram bem-vindos os reforços: ele viu com prazer o seu Lada creme e não resistiu a regressar a toda a velocidade. E foi depois de Mato-Cão que se matou uma vaca e não um cão. O carro duro como os soviéticos sobreviveu. Escândalo que atraiu os populares: de quem é a vaca? Ninguém conhecia nem a vaca nem o dono, por isso o melhor era transformá-la em presente de Natal. Afinal nessa noite festejar-se-ia o nascimento do Menino Jesus. A sucessão de acontecimentos parecia não ter fim e a viagem de regresso, essa, já durava mais do que 24 horas. Uma vez em Bissau, carro estacionado, novas contadas, chegava a hora do banho e do pequeno descanso em preparação para a consoada. Que consoada tão bem-vinda... Mas o destino ia ser outro. Como se não bastasse tudo o que já tinha acontecido, ouviam-se agora gritos, vindos do quintal, do que parecia ser uma rixa bem agressiva. Corrida, atropelos e descoberta: era um ladrão apanhado pela justiça popular. E que tinha roubado? Um colchão que lhe pertencia. Despiram o ladrão, davam-lhe pontapés. Ele contorcia-se sem defesa, gritando por ajuda. Quem o ajudou? Ele, claro, que depois de tantas viagens estava agora a caminho da casa do ladrão, porque, se o levasse à esquadra, talvez este nunca mais visse Natal. Agora imagine-se o paradoxo de entregar um ladrão em cuecas, espancado e ensanguentado, à mãe do dito cujo, que chorando agradecia a benevolência do roubado. Agora sim, tinha terminado a viagem. Agora sim, viesse a consoada. Só na minha terra mesmo.


Carlos Lopes
(sociólogo guineense)



Publicado no jornal Público (27-2-2000)




quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Navegações VIII (Sophia de Mello Breyner Andresen)




Navegações VIII

Vi as águas vi os cabos vi as ilhas
E o longo baloiçar dos coqueirais
Vi lagunas azuis como safiras
Rápidas aves furtivos animais
Vi prodígios espantos maravilhas
Vi homens nus bailando nos areais
E ouvi o fundo som de suas falas
Que já nenhum de nós entendeu mais
Vi ferros e vi setas e vi lanças
Oiro também à flor das ondas finas
E o diverso fulgor de outros metais
Vi pérolas e vi conchas e corais
Desertos fontes trémulas campinas
Vi o rosto de Eurydice nas neblinas
Vi o frescor das coisas naturais
Só do Preste João não vi sinais

As ordens que levava não cumpri
E assim contando tudo quanto vi
Não sei se tudo errei ou descobri


Sophia de Mello Breyner Andresen


Ouvimos o poema na voz de Maria Barroso


* * * * * * * * * *

O Preste João foi um lendário soberano cristão do Oriente que detinha funções de patriarca e rei, correspondendo, na verdade, ao Imperador da Etiópia. "Preste" é uma corruptela do francês Prêtre, ou seja, padre. Diz-se que era um homem virtuoso e um governante generoso. O reino de Preste João foi objecto de uma busca que instigou a imaginação de gerações de aventureiros, mas que sempre permaneceu fora de seu alcance. 

Continuar a ler na Wikipédia





Por sua vez, a Infopédia diz-nos o seguinte do Preste João :

A lenda do Preste João das Índias é muito antiga, pois já Marco Polo a ela se referia no seu diário de viagens. São vários e muito antigos os testemunhos de que existiria no Oriente um rei cristão nestoriano chamado João, cujo império estaria situado na Ásia, segundo uns, ou em África, segundo outros. Os reis cristãos que combatiam o Islamismo fizeram várias tentativas para contactar este importante aliado no Oriente, mas sem resultados. Em 1486, João Afonso de Aveiro trouxe da costa de Benim uns enviados do rei daqueles terras que levou à presença de D. João II. Estes relataram ao rei português que, a vinte luas da costa, onde hoje é a Etiópia, habitava um rei muito poderoso do qual forneceram muitas informações que levaram os cosmógrafos portugueses a dizer que se tratava do Preste João. D. João II escolheu Afonso de Paiva e Pero da Covilhã, que mandou para África como seus emissários. Chegados ao Cairo, separam-se aqui, seguindo Pero de Covilhã até à Índia. Quando este voltou, soube que o seu companheiro tinha morrido. Pero da Covilhã dirigiu-se então à Abissínia, de onde o rei Naú nunca o deixou sair, dando-lhe o governo de um feudo. Impossibilitado de voltar a Portugal, onde tinha família, Pero da Covilhã fundou uma nova família e teve muitos filhos. Tanto na Índia como depois em África, Pero da Covilhã prestou importantes serviços a Portugal, recolhendo uma série de informações que foram cruciais para a presença dos Portugueses naquelas paragens. Os relatos de Pero da Covilhã foram transmitidos ao padre Francisco Álvares, que com ele se encontrou na Abissínia, e que os deixou escritos para a posteridade quando voltou para Portugal. Ao que parece, Preste João nunca foi encontrado, mas a sua lenda e a vontade de o ter como aliado inspirou durante anos muitos Portugueses e motivou uma série de viagens que foram muito importantes na época dos Descobrimentos.



terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Uma citação de Ferreira Gullar



Somos todos irmãos, não porque dividamos o mesmo teto e a mesma mesa: divisamos a mesma espada, sobre nossa cabeça.

Ferreira Gullar,pseudónimo de José Ribamar Ferreira, é um poeta brasileiro, nascido em 1930.


Um poema dele no nosso blogue: "Cantiga pra não morrer"


Ferreira Gullar em releituras e em Jornal de Poesia



sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

"Quando vieres..." (Maria Eugénia Cunhal)

Maria Eugénia Cunhal (Fot. de Bruno Castanheira)



Quando vieres
Encontrarás tudo como quando partiste.
A mãe bordará a um canto da sala...
Apenas os cabelos mais brancos
E o olhar mais cansado.
O pai fumará o seu cigarro depois do jantar
E lerá o jornal.

Quando vieres
Só não encontrarás aquela menina de saias curtas
E cabelos entrançados
Que deixaste um dia.
Mas os meus filhos brincarão nos teus joelhos
Como se te tivessem sempre conhecido.

Quando vieres
Nenhum de nós dirá nada
Mas a mãe largará o bordado
O pai largará o jornal
As crianças os brinquedos
E abriremos para ti os nossos corações,

Pois quando vieres
Não és só tu que vens
É todo um mundo novo que despontará lá fora
Quando vieres.

Maria Eugénia Cunhal (1927 - 2015)


Poema retirado desta mensagem do blogue antologia do esquecimento: "Maria Eugénia Cunhal (1927 - 2015)"

* * * * * * * * * *

Morreu Maria Eugénia Cunhal

PÚBLICO e Lusa

10/12/2015 - 15:35

Irmã de Álvaro Cunhal, militante do PCP, jornalista e escritora tinha 88 anos.





quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Poema da pedra lioz (António Gedeão)





Poema da pedra lioz

Álvaro Gois,
Rui Mamede,
filhos de António Brandão,
naturais de Catanhede,
pedreiros de profissão,
de sombrias cataduras
como bisontes lendários,
modelam ternas figuras
na lentidão dos calcários.

Ali, no esconso recanto,
só o túmulo, e mais nada,
suspenso no roxo pranto
de uma fresta geminada.
Mas no silêncio da nave,
como um cinzel que batuca,
soa sempre um truca…truca…
lento, pausado, suave,
truca, truca, truca, truca,
sob a abóbada romântica,
como um cinzel que batuca
numa insistência satânica:
truca, truca, truca, truca,
truca, truca, truca, truca.

Álvaro Gois,
Rui Mamede,
filhos de António Brandão,
naturais de Cantanhede,
ambos vivos ali estão,
truca, truca, truca, truca,
vestidos de sunobeco
e acocorados no chão,
truca, truca, truca, truca.

No friso, largo de um palmo,
que dá volta a toda a arca,
um cristo, de gesto calmo,
assiste ao chegar da barca.
Homens de vária feição,
barrigudos e contentes,
mostram, no riso dos dentes
o gozo da salvação.
Anjinhos de longas vestes,
e cabelo aos caracóis,
tocam pífaro celestes,
entre cometas e sóis.
Mulheres e homens, sem paz,
esgaseados de remorsos,
desistem de fazer esforços,
entregam-se a Satanás.

Fixando a pedra, mirando-a,
quanto mais o olhar se educa,
mais se estende o truca…truca…
que enche a nave, transbordando-a,
truca, truca, truca, truca
truca, truca, truca, truca.

No desmedido caixão,
grande sonhor ali jaz.
Pupilo de Satanás?
Alma pura, de eleição?
Dom Afonso ou Dom João?
Para o caso tanto faz.

António Gedeão


Biografia de António Gedeão (1906 - 1997), pseudónimo de Rómulo de Carvalho.


Nota. Lioz ou pedra lioz é um tipo raro de calcário que ocorre em Portugal, na região de Lisboa e seus arredores.... (Wikipédia)


Torre de Belém, em Belém (Lisboa), feito de lioz.




sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Palavras para uma cidade (José Saramago)



Tempo houve em que Lisboa não tinha esse nome. Chamavam-lhe Olisipo quando os Romanos ali chegaram, Olissibona quando a tomaram os Mouros, que logo deram em dizer Aschbouna, talvez porque não soubessem pronunciar a bárbara palavra. Quando, em 1147, depois de um cerco de três meses, os Mouros foram vencidos, o nome da cidade não mudou logo na hora seguinte: se aquele que iria ser o nosso primeiro rei enviou à família uma carta a anunciar o feito, o mais provável é que tenha escrito ao alto Aschbouna, 24 de Outubro, ou Olissibona, mas nunca Lisboa. Quando começou Lisboa a ser Lisboa de facto e de direito? Pelo menos alguns anos tiveram de passar antes que o novo nome nascesse, tal como para que os conquistadores Galegos começassem a tornar-se Portugueses…Estas miudezas históricas interessam pouco, dir-se-á, mas a mim interessar-me-ia muito, não só saber, mas ver, no exacto sentido da palavra, como veio mudando Lisboa desde aqueles dias. Se o cinema já existisse então, se os velhos cronistas fossem operadores de câmara, se as mil e uma mudanças por que Lisboa passou ao longo dos séculos tivessem sido registadas, poderíamos ver essa Lisboa de oito séculos crescer e mover-se como um ser vivo, como aquelas flores que a televisão nos mostra, abrindo-se em poucos segundos, desde o botão ainda fechado ao esplendor final das formas e das cores. Creio que amaria a essa Lisboa por cima de todas as cousas.Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo. Esse filme de Lisboa, comprimindo o tempo e expandindo o espaço, seria a memória perfeita da cidade.O que sabemos dos lugares é coincidirmos com eles durante um certo tempo no espaço que são. O lugar estava ali, a pessoa apareceu, depois a pessoa partiu, o lugar continuou, o lugar tinha feito a pessoa, a pessoa havia transformado o lugar. Quando tive de recriar o espaço e o tempo de Lisboa onde Ricardo Reis viveria o seu último ano, sabia de antemão que não seriam coincidentes as duas noções do tempo e do lugar: a do adolescente tímido que fui, fechado na sua condição social, e a do poeta lúcido e genial que frequentava as mais altas regiões do espírito. A minha Lisboa foi sempre a dos bairros pobres, e quando, muito mais tarde, as circunstâncias me levaram a viver noutros ambientes, a memória que preferi guardar foi a da Lisboa dos meus primeiros anos, a Lisboa da gente de pouco ter e de muito sentir, ainda rural nos costumes e na compreensão do mundo.Talvez não seja possível falar de uma cidade sem citar umas quantas datas notáveis da sua existência histórica. Aqui, falando de Lisboa, foi mencionada uma só, a do seu começo português: não será particularmente grave o pecado de glorificação… Sê-lo-ia, sim, ceder àquela espécie de exaltação patriótica que, à falta de inimigos reais sobre que fazer cair o seu suposto poder, procura os estímulos fáceis da evocação retórica. As retóricas comemorativas, não sendo forçosamente um mal, comportam no entanto um sentimento de auto-complacência que leva a confundir as palavras com os actos, quando as não coloca no lugar que só a eles competiria.Naquele dia de Outubro, o então ainda mal iniciado Portugal deu um largo passo em frente, e tão firme foi ele que não voltou Lisboa a ser perdida. Mas não nos permitamos a napoleónica vaidade de exclamar: “Do alto daquele castelo oitocentos anos nos contemplam” – e aplaudir-nos depois uns aos outros por termos durado tanto… Pensemos antes que do sangue derramado por um e outro lados está feito o sangue que levamos nas veias, nós, os herdeiros desta cidade, filhos de cristãos e de mouros, de pretos e de judeus, de índios e de amarelos, enfim, de todas as raças e credos que se dizem bons, de todos os credos e raças a que chamam maus. Deixemos na irónica paz dos túmulos aquelas mentes transviadas que, num passado não distante, inventaram para os Portugueses um “dia da raça”, e reivindiquemos a magnífica mestiçagem, não apenas de sangues, mas sobretudo de culturas, que fundou Portugal e o fez durar até hoje.Lisboa tem-se transformado nos últimos anos, foi capaz de acordar na consciência dos seus cidadãos o renovo de forças que a arrancou do marasmo em que caíra. Em nome da modernização levantam-se muros de betão sobre as pedras antigas, transtornam-se os perfis das colinas, alteram-se os panoramas, modificam-se os ângulos de visão. Mas o espírito de Lisboa sobrevive, e é o espírito que faz eternas as cidades. Arrebatado por aquele louco amor e aquele divino entusiasmo que moram nos poetas, Camões escreveu um dia, falando de Lisboa: “…cidade que facilmente das outras é princesa”. Perdoemos-lhe o exagero. Basta que Lisboa seja simplesmente o que deve ser: culta, moderna, limpa, organizada – sem perder nada da sua alma. E se todas estas bondades acabarem por fazer dela uma rainha, pois que o seja. Na república que nós somos serão sempre bem-vindas rainhas assim.

José Saramago

Folhas Políticas 1976-1998, Caminho, 1999, pp 178 – 182

O Caderno, Caminho, 2009, pp 19 – 23


(Texto: Fundação José Saramago)



quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

"Ah, como incerta, na noite em frente" (Fernando Pessoa)

Fotografia de Américo Mieira




Ah, como incerta, na noite em frente,
De uma longínqua tasca vizinha
Uma ária antiga, subitamente,
Me faz saudades do que as não tinha.

A ária é antiga? É-o a guitarra.
Da ária mesma não sei, não sei.
Sinto a dor-sangue, não vejo a garra.
Não choro, e sinto que já chorei.

Qual o passado que me trouxeram?
Nem meu nem de outro, é só passado:
Todas as coisas que já morreram
A mim e a todos, no mundo andado.

É o tempo, o tempo que leva a vida
Que chora e choro na noite triste.
É a mágoa, a queixa mal definida
De quando existe, só porque existe.

Fernando Pessoa


14-8-1932


Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990). - 86.



A morte de Fernando Pessoa no 'Diário de Notícias', de 3 de Dezembro de 1935



Morreu Fernando Pessoa – Grande poeta de Portugal

A notícia necrológica do «Diário de Notícias» com as palavras proferidas por Luís de Montalvor

Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da «Mensagem», poema de exaltação nacionalista, dos mais belos que se tem escrito, foi ontem a enterrar.
Surpreendeu-o a morte, num leito cristão do Hospital de S. Luís, no sábado à noite.
A sua passagem pela vida foi um rastro de luz e de originalidade. Em 1915, com Luís de Montalvor, Mário de Sá-Carneiro e Ronald de Carvalho – estes dois já mortos para a vida – lançou o «Orpheu», que tão profunda influência exerceu no nosso meio literário, e a sua personalidade foi-se depois afirmando mais e mais. Do fundo da sua «tertúlia», a uma mesa do Martinho da Arcada, Fernando Pessoa era sempre o mais novo de todos os novos que em volta dele se sentavam. Desconcertante, profundamente original e estruturalmente verdadeiro, a sua personalidade era vária como vário o rumo da sua vida. Ele não tinha uma actividade «una», uma actividade dirigida: tinha múltiplas actividades.
Na poesia não era só ele: Fernando Pessoa; ele era também Álvaro de Campos e Alberto Caeiro e Ricardo Reis. E era-os profundamente, como só ele sabia ser. E na poesia como na vida. E na vida como na arte.
Tudo nele era inesperado. Desde a sua vida, até aos seus poemas, até à sua morte.
Inesperadamente, como se se anunciasse um livro ou uma nova corrente literária por ele idealizada e vitalizada, correu a notícia da sua morte. Um grupo de amigos conduziu-o ontem a um jazigo banal do cemitério dos Prazeres. Lá ficou, vizinho de outro grande poeta que ele muito admirava, junto do seu querido Cesário, desse Cesário que ele não conhecera e que, como ninguém, compreendia.
Se Fernando Pessoa morreu, se a matéria abandonou o corpo, o seu espírito não abandonará nunca o coração e o cérebro dos que o amavam e admiravam. Entre eles fica a sua obra e a sua alma. A eles compete velar para que o nome daquele que foi grande não caia na vala comum do esquecimento.
Tinha 47 anos o poeta que ontem foi a enterrar. Quarenta e sete anos e um grande amor à Vida, à Arte e à Beleza. Quando novo, acasos do Destino, a que ele obedecia inteiramente – Fernando Pessoa teósofo, cristão, que conhecia todas as seitas religiosas e as negativistas, pagão como só os artistas sabem ser, Fernando Pessoa obedecia cegamente ao Destino – levaram-no para a África do Sul. E na Universidade do Cabo cursou o inglês. E de tal maneira estudou a língua que Shakespeare e Milton imortalizaram, que, anos passados, apresentava aos «cercles» literários da serena Albion quatro livros de poemas - «English Poems», I, II, III, IV; «Antinous» e «35 Sonnets». E num concurso de língua inglesa alcançou o primeiro prémio.
Depois, uma vez em Portugal, a sua actividade literária aumentou. É de então que data a sua colaboração na «Águia», onde o seu messianismo metafísico, num célebre e elevado estudo, anunciou o aparecimento do Super-Camões da literatura portuguesa.
1915. «Orpheu». Movimento intenso de renovação. Entretanto, colabora no «Centauro», «Exílio», «Portugal Futurista», «Contemporânea». Começa a ser amado e compreendido.
1924. Funda com Rui Vaz a revista «Athena». Depois, de então para cá, a sua actividade multiplica-se. Colabora em revistas modernistas, como «Presença», «Momento» e, há um mês ainda, no «Sudoeste», que Almada Negreiros fundou com notável desassombro. Traduziu Shakespeare e Edgar Poe. Estas são, em linhas muito esquemáticas e gerais, as obras que definem a sua personalidade. Quem o quiser compreender folheie a sua obra vasta e dispersa. Começará a amá-lo.
Da capela do cemitério dos Prazeres, para jazigo de família, cerca das onze horas de ontem, partiu o corpo do grande poeta. Alguns amigos de sempre acompanharam-no. Foram eles, pelo «Orpheu», Luís de Montalvor, António Ferro, Raul Leal, Alfredo Guisado e Almada Negreiros; pela «Presença», João Gaspar Simões; pelo «Momento», Artur Augusto e José Augusto; e Ferreira Gomes, Diogo de Macedo, Dr. Celestino Soares, António Botto, Castelo de Morais, João de Sousa Fonseca, Dr. Jaime Neves, António Pedro, Albino Lapa, Silva Tavares, Vitoriano Braga, Augusto de Santa-Rita, Luís Pedro, Luís Moita, Manuel Serras, Dr. Boto de Carvalho, Rogério Perez, Celestino Silva, Telino Felgueiras, Nogueira de Brito, Dante Silva Ramos, Carlos Queiroz, Mário de Barros, Dr. Rui Santos, Marques Matias, Gil Vaz, Luís Teixeira e poucos mais.
O sr. capitão Caetano Dias, cunhado do poeta, representava a família.
Em frente do jazigo que Fernando Pessoa passa a habitar, Luís de Montalvor, seu companheiro de 24 anos de vida literária, proferiu simples e emotivas palavras em nome dos sobreviventes do grupo do «Orpheu».
E disse:
«Duas palavras sobre o trânsito mortal de Fernando Pessoa.
Para ele chegam duas palavras, ou nenhumas. Preferível fora o silêncio, o silêncio que já o envolve a ele e a nós, que é da estatura do seu espírito.
Com ele só está bem o que está perto de Deus. Mas também não deviam, nem podiam, os que foram pares com ele no convívio da sua Beleza, vê-lo descer à terra, ou antes, subir, ganhar as linhas definitivas da Eternidade, sem enunciar o protesto calmo, mas humano, da raiva que nos fica da sua partida.
«Não podiam os seus companheiros de «Orpheu», antes os seus irmãos, do mesmo sangue ideal da sua Beleza, não podiam, repito, deixá-lo aqui, na terra extrema, sem ao menos terem desfolhado, sobre a sua morte gentil, o lírio branco do seu silêncio e da sua dor.
«Lastimamos o homem, que a morte nos rouba, e com ele a perda do prodígio do seu convívio e da graça da sua presença humana. Somente o homem, é duro dizê-lo, pois que ao seu espírito e ao seu poder criador, a esses deu-lhes o Destino uma estranha formosura, que não morre.
O resto é com o génio de Fernando Pessoa.»

Os serviços fúnebres estiveram a cargo da Agência Barata.(1)


(1) – A notícia tal como foi publicada no Diário de Notícias, de 3 de Dezembro de 1935.