quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Palavras de Hélia Correia



Este é um texto pujante, arrepiante. É “um texto de amor pela Grécia e de aflição por nós todos”. É um texto sobre “um dos mais difíceis momentos da História, porque não há um inimigo visível e somos todos culpados”. É um texto na primeira pessoa, de Hélia Correia, mas escrito pela jornalista Christiana Martins em 2013 após uma conversa com a escritora que acaba de ser distinguida com o Prémio Camões. E este é um texto que não pode perder. (17-6-2015)


Escrevo quando tenho energia. Com o sol e o calor, não consigo, estiolo. A escrita passa-me pelo corpo. Não é uma decisão voluntária.

Em Portugal estou exilada. Adoeço. Mas a minha língua é esta. Nasci em Mafra, mas Sintra é a minha terra. Estas pertenças não se explicam. Há quem diga que se deve à minha ascendência escocesa. Entre os celtas modifico-me. Fico ativa. Tomo as rédeas. Até ganho apetite! Em Portugal, não.

Deixo que tratem de mim.

Cheguei à Escócia muito tarde. Tive relutância em ir mais cedo porque receava que a realidade entrasse em choque com o imaginário.

O primeiro embate não foi agradável, mas, depois, percebi de onde vinha.

A Grécia é a minha casa espiritual. É uma ligação de outra natureza. A Grécia Clássica não é um modelo, é uma inspiração. É preciso ter-se consciência de que não se regressa ao passado. O que vemos naquele país é um povo de hoje com uma luta atual. A verdadeira Grécia está lá, mas não exposta aos olhos do turista normal. É preciso um guia. Fui levada à Grécia por uma grande amiga e quis mostrar-lhe o período antigo. Levei-a a Pnyx, a colina junto da Acrópole onde funcionava a assembleia ateniense. Pnyx quer dizer tijolo, porque ali se juntavam os dez mil cidadãos livres de Atenas. Fi-la sentar no sítio onde se imagina que Péricles, o estadista, se terá sentado e pedi-lhe para ler a oração fúnebre aos soldados mortos, escrita por Tucídides. É um elogio de Atenas, um texto muito político, belo e coerente. A minha amiga percebeu o que eu lhe queria mostrar e sonhou levar pessoas de muitas nações à Pnyx para ler o discurso em várias línguas. Fica a proposta.

Para sobreviver, tenho os meus refúgios mentais. São espaços privados que constituem um alimento fundamental. Territórios muito próprios e autossustentáveis.

Mas também tenho a minha entidade enquanto cidadã e é sobre esta que cai o peso da responsabilidade. "A Terceira Miséria" surgiu porque me convidaram a escrever um poema para o "Público". A condição foi que saísse na data da primeira grande manifestação dos indignados.

Todos os dias acordava a pensar na Grécia e escrevia. Acabei por escrever um poema longo, que não cabia numa página de jornal. Então, fiz outro, a que dei o nome de "Indignação", e foi lido na manifestação.

Fiquei com o maior nas mãos.

Vivemos um dos mais difíceis momentos da História. Não há um inimigo visível e somos todos culpados porque deixámos que o consumismo se instalasse nas pessoas como uma injeção letal. Ganância sempre houve, mas este consumismo estrangulou a criatividade. Começam-se a ver lampejos de irreverência eficaz. São atos desligados, pequenas pedras, mas as pessoas não têm técnica para construir um muro. Esta é uma luta desigual.

Noutros tempos, as armas eram as mesmas: espada contra espada.

Numa ditadura, a situação é outra. É o que nos acontece atualmente.

Não gosto da imagem do guia das multidões, mas é aos filósofos que cabe ocupar este espaço. Precisamos de filósofos dotados de uma linguagem nova. Não de arautos iluminados, mas que cada um de nós se torne um filósofo. Não é uma época para os poetas. Dispomos da internet e todas as pessoas têm acesso a meios de publicação e de divulgação. É uma porta aberta e uma possibilidade extraordinária. Torna-nos deuses porque vencemos o tempo e o espaço. O grande desafio é levar as pessoas a pensar em conjunto. A internet criou uma ágora que tem de ser ocupada, um espaço onde a polícia não coloca as botas. Mas também é preciso que as pessoas saiam de casa, que se unam. O corpo faz falta.

"A Terceira Miséria" é um livro político, escrito com urgência. Foi escrito como um alerta e resulta de um percurso elaborado dentro de mim. Um texto de amor pela Grécia e de aflição por nós todos.


Texto publicado na edição do Expresso de 13 de abril de 2013