segunda-feira, 13 de abril de 2015

Corte na Aldeia (Francisco Rodrigues Lobo)



Perto da cidade principal da Lusitânia está uma graciosa aldeia, que com igual distância fica situada à vista do mar Oceano, fresca no verão, com muitos favores da natureza, e rica no estio e inverno com os frutos e comodidades que ajudam a passar a vida saborosamente: porque com a vizinhança dos portos do mar por uma parte, e da outra com a comunicação de uma ribeira que enche os seus vales, e outeiros de arvoredos e verdura tem em todos os tempos do ano que em diferentes lugares costuma buscar a necessidade dos homens; e por este respeito foi sempre o sítio escolhido para desvio da corte e voluntário desterro do tráfego dela; dos cortesãos que ali tinham quintas, amigos, ou heranças que costumam ser valhacoutos dos excessivos gastos da cidade. Um inverno em que a aldeia estava feita corte com homens de tanto preço que a podiam fazer em qualquer parte, se juntava a maior parte deles em casa de um antigo morador daquele lugar que também o fora em outra idade da Casa dos Reis, donde com a mudança e experiência dos anos fez eleição dos montes para passar neles os que lhe ficavam da vida, grande acerto de quem colhe esse fruto maduro entre desenganos. Ali ora em conversação aprazível, ora em moderado e quieto jogo, se passava o tempo, se gozavam as noites, se sentiam menos as importunas chuvas e ventos de novembro, e se amparavam contra os frios rigorosos de janeiro. Entre outros homens, que naquela companhia se achavam, eram nela mais costumados em anoitecendo um letrado, que ali tinha um casal, e que já tivera honra dos cargos do governo da justiça na cidade, homem prudente, concertado na vida, douto na sua profissão, e lido nas histórias da humanidade. Um fidalgo mancebo, inclinado aos exercícios da caça e muito afeiçoado às cousas da pátria, em cujas histórias estava bem visto. Um estudante de bom engenho que entre os seus estudos se empregava algumas vezes nos da poesia. Um velho não muito rico, que tinha servido a um dos grandes da Corte, com cujo galardão se reparava naquele lugar, homem de boa criação, e além de bem entendido, notavelmente engraçado no que dizia, e muito natural de uma murmuração que ficasse entre o couro e a carne, sem dor ferida penetrante. Ao senhor da casa chamavam Leonardo, ao doutor, Lívio, ao fidalgo, D. Júlio, ao estudante, Píndaro, e ao velho, Solino. Fora estes havia outros, de quem em seus lugares se fará menção, que assim como os mais não eram para enjeitar em uma conversação de poucas porfias.

Francisco Rodrigues Lobo (Leiria, 1580  — Lisboa, 1622)



Francisco Rodrigues Lobo nasceu em Leiria em 1580 e faleceu em Lisboa em 1622. É um dos mais importantes discípulos de Camões. Tendo sido influenciado por Gôngora, é considerado o iniciador do Barroco na literatura portuguesa. Era de uma família de cristãos-novos, formou-se em Direito na Universidade de Coimbra, não se conhecendo quaisquer cargos públicos que tenha exercido. Morreu afogado numa viagem de barco que fazia entre Santarém e Lisboa. A nível poético, escreveu romances bucólicos, éclogas e sonetos. Em prosa escreveu a Corte na Aldeia (1619), que é uma coleção de diálogos didáticos sobre preceitos da vida na corte. Esta obra reflete a frustração da nobreza portuguesa pelo desaparecimento da corte nacional sob a dominação filipina.

(Projecto Vercial - Universidade do Minho)



Na dedicatória da obra, Rodrigues Lobo convida D. Duarte de Bragança a preservar e ter orgulho da "língua e da nação Portuguesa" que, no passado, conheceu momentos muito mais gloriosos.

(Wikipédia)