segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Um Natal nunca se esquece (Francisco Louçã)



 UM NATAL NUNCA SE ESQUECE

Talvez o Natal seja um dos dias mais felizes das nossas infâncias. Havia nele um encantamento que os nossos aniversários não têm, porque nestes pesa a responsabilidade: em contrapartida, por ser de todos e não só dela, o Natal de uma criança tem uma aura leve de magia, de lenda, de animação vermelha e dourada, de decoração festiva (o que são as bolas nas árvores?), de cheiros de pinheiros (onde estão agora os cheiros dos pinheiros?) e, sobretudo, de surpresa, que era sempre ansiosamente aguardada e vivida. Pela noite fora e pelo dia 25, o Natal era a espera dos presentes, o encontro da família – coisa que se vai fazendo rara – e o começo de um novo ano, porque era a 26, no arrumar da festa, que começava mesmo o ano novo.

Olhando para trás, olho para esses natais e revejo-os nas crianças que abrem os embrulhos ou que se sentam à mesa. Para uns, antes, e para outros, agora, o Natal foi talvez a primeira noção de festa comunitária que vivemos. E isso nunca se esquece.

Outras festas, noutros lugares, são mais alegres do que as nossas. As festas do Dia de Mortos, no México, ou, nas vésperas, o Halloween, nos Estados Unidos e por aí fora, são outro carnaval: as caveiras e os símbolos mais tétricos são disfarces de alegria e de fantasia, máscaras dentro de máscaras, religiões cruzadas entre as comemorações do calendário azteca e a mitologia cristã ou, no caso das tradições dos imigrantes para os Estados Unidos, sabe-se lá o quê mais. Iconoclastas, pagãos, religiosos, o caldeirão das culturas antigas faz a festa. Nós não temos nem essa alegria nem essa irreverência: a nossa é mais contida, mais caseira, mais mansa até. Talvez nas ruas se sinta mais o “White Christmas” do que a missa do galo, mas é certamente uma festa mais recatada. Só quem é ou foi criança pode então saber da imensa alegria que deve ser essa festa, porque é um saboroso segredo de cada um e portanto de todos.

E se as crianças são hoje a principal vítima da tristeza da austeridade, do empobrecimento empedernido, do isolamento e do silenciamento, dos cálculos sinistros das rendas financeiras, o Natal lembra que, mais do que a festa, há uma responsabilidade que todos partilhamos para com os nossos. Temos falhado demasiado para com eles. Merecem por isso não ser esquecidos, porque a infância precisa da sua festa e, se ela há-de ser no dia que a criança quiser, que seja também no dia 25.

Francisco Louçã


Lido no diário Público (27-12-2014)