terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Constrangimentos e vantagens de ter nascido numa ilha

A Rocha dos Bordões na Ilha das Flores (*)


Achei este interessante texto sobre a experiência de alguém que nasceu e cresceu numa ilha, nomeadamente a açoriana Ilha das Flores, num blogue cuja última mensagem foi publicada infelizmente em agosto de 2011: Luana - a Gabriela Silva das Flores. Lamento que assim fosse. Ficaria contente se alguém ler este artigo neste blogue, e daí passa para as outras mensagens de Luana - a Gabriela Silva das Flores.



CONSTRANGIMENTOS E VANTAGENS DE TER NASCIDO NUMA ILHA

Nasci na ilha das Flores no ano santo de 1950 por alturas do Pentecostes. Dada a formação religiosa da minha mãe e a matriz profundamente cristã do povo açoriano, era quase inevitável que me tenha baptizado com o nome de José do Espírito Santo. Algumas vizinhas, dadas a crendices e coisas de bruxas arrepiaram-se pois alguns anos atrás tinha-se enforcado um tal José do Espírito Santo, natural das Lajes e a invocação deste Santíssimo nome, em vez de lhes lembrar a Trindade Divina sempre lhes trazia à memória e recordação do suicida e temiam que sobre mim viessem a cair anátemas de perdições e desgraça. Mas com o passar dos anos a lembrança do enforcado foi-se diluindo e o meu nome impôs-se. Como o do meu primo Moisés e dos meus amigos Abraão, Agostinho, Jonas, Job e Noé, entre outros. Nesse tempo nascer numa ilha dos Açores implicava pois, a possibilidade de ter um nome bíblico o que, só por si já diz muito sobre o quotidiano da época. Quase diria que o tempo era mais marcado pelo calendário litúrgico do que pelo calendário gregoriano – Quaresma, Páscoa, Pentecostes, Advento, Natal, Tempo Comum, eram as coordenadas de uma vivência fortemente marcada pelo que se passava no interior dos templos. Fácil é inferir a raiz matricial sobre que assentavam as nossas vidas. Até à morte de Pio XII aquelas intermináveis missas em latim, o conceito de que quase tudo era pecado a enlutar-nos a alma e a consciência, a divulgação de um Deus severo e castigador e as ilustrações horríveis das chamas do Inferno dos velhos catecismos foram bastante castradoras a todos os níveis. Com a chegada de João XXIII à cadeira de Pedro, o Concílio Vaticano II e a entrada nos anos sessenta com Mary Quant cá fora “Where the action is” a inventar a mini-saia, com os novos ritmos como o twist e depois a revolução que foram os Beatles e o Movimento Hippie deu-se uma revolução de mentalidades, até mesmo dentro da Igreja. Os padres passaram a ter um discurso mais aberto, mais voltado para os jovens e Deus passou a ser mais humanizado. Mas as marcas das primeiras catequeses ficaram para sempre com tudo o que isso tem de mau, nomeadamente com a obsessão do pecado, do proibido, da transgressão sobretudo quando chegado à puberdade e à adolescência tanto sonhava com a criada como com generosos decotes de Sara Montiel e a sua voz quente e sensual a interpretar as violetas imperiais.

Para além dos constrangimentos ligados à religião e que já aflorei, muitos outros existiam na época.

As estradas dentro da ilha eram poucas e más tal como os meios de transporte. Só havia telefone até às 20 horas dentro da ilha e para fora da ilha só se podia comunicar por telegrama. De certo modo as crianças e os jovens só interagiam com outros da sua idade dentro do universo limitado da própria freguesia. Exceptuavam-se os “dias de vapor” que vinha de mês a mês (e mais tarde de 15 em 15 dias) e as omnipresentes festas religiosas.

As dificuldades para estudar eram imensas pois só em Santa Cruz havia um Externato onde se leccionava até ao 5º ano do Liceu mas das Lajes para lá não havia transportes e aí só lográvamos chegar ao 5º ano com explicações particulares de gente muito amiga e com muito sacrifício pessoal já que, pessoalmente, fiz caminhadas diárias a pé Fazenda-Lajes-Fazenda como quem faz uma via-sacra.

A estreiteza de horizontes, a visão redutora do mundo e das coisas, a dificuldade ou ausência de comunicações a vários níveis criou-me sobretudo um problema posterior e que foi a adaptação à cidade de Lisboa quando para lá fui estudar medicina em 1969. Basta dizer que só no hospital de Santa Maria circulam diariamente mais pessoas do que a ilha das Flores tinha naquele tempo. Mas essa minha dificuldade de adaptação que, agora entendo, se manifestou com muita ansiedade e agorafobia, radicava certamente em questões de temperamento e personalidade de base pois havia muito boieiro semi analfabeto das Flores que vinha a Lisboa acompanhar as vacas no navio e não regressava sem ter ido ver jogar o Benfica, ir ao Jardim Zoológico, ao Aquário Vasco da Gama e outras coisas mais. Fez-me sempre impressão como é que eles se “amanhavam”.

Mas se o nascer e viver nas Flores até aos dezanove anos (excepto o período dos dezassete aos dezanove em que frequentei o 3º ciclo na Horta) criou limitações e constrangimentos, a verdade é que a coisa também teve as suas vantagens ou, melhor dizendo, teve as suas coisas boas.

Apesar de o meu pai ser funcionário público eu inevitavelmente tive uma grande comunhão com as coisas da terra e do mar. Venho do tempo da caça à baleia. Assisti à ansiedade, gritos e imprecações dos vigias, ao lançar da bomba como sinal de “baleia à vista” e, no dia seguinte, via-as serem desmanchadas com golpes hábeis de sopão no meio de grande “pivete” enquanto lá em baixo, no mar pintado de vermelho, a sargalhada e pequenos esqualos repartiam as carnes do cetáceo. Dos pescadores fiquei a saber tudo sobre a faina e do mar ensinaram-me a adivinhar-lhe as fúrias, as ressacas e os remansos. Com os meus primos aprendi a ordenhar uma vaca, vi nascer bezerros e vi os bois fecundarem a vaca à moda antiga e não como agora, artificialmente com esperma conservado em azoto líquido. Com os meus tios aprendi a sangrar um porco, desmanchá-lo, conhecer-lhe a anatomia.

 Sozinho vagueando pelos campos com ratoeiras para apanhar tentilhões aprendi quase tudo sobre plantas e ervas, frutos e árvores, aromas e sabores. Com os amigos, tomávamos banho “em coiro” na ribeira sem sombra de pecado ou culpa e sem constrangimentos ou vergonha na exposição cândida dos corpos.

E depois havia uma coisa excelente que era a Biblioteca Itinerante da Gulbenkian. E uma das formas que tínhamos para combater a pasmaceira da ilha era ler. Ler compulsivamente. Ainda por cima o senhor Luís facultava-me os livros “malditos” (os de cinta vermelha) antes de ter a idade que o Governo de Salazar determinava como razoável. Li Crime e Castigo de Dostoievsky cerca dos 14 anos, o Crime do Padre Amaro um pouco mais tarde mas também Stefan Zeig, Nikos Kazantzaki, Vitor Hugo, Balzac. Os clássicos portugueses todos e alguma poesia. Julgo que essas leituras formataram o meu gosto pela escrita e daí que, desde os quinze anos, escreva para vários jornais. Actualmente vivo em Castelo Branco e tenho uma página quinzenal no semanário Reconquista. Acho que o acto de escrever impôs-me uma disciplina e um domínio do português que me têm sido muito úteis na profissão de médico onde, frequentemente, temos que elaborar relatórios, dar pareceres, fazer conferências, etc. Acho sinceramente que se tivesse nascido numa grande cidade, não teria lido tanto. Ficar-me-ia certamente pelos compêndios da praxe e pelas leituras obrigatórias de acordo com os programas escolares.

Chegado aqui tenho dificuldade em saber se nos pratos da balança onde se pesam as vantagens e constrangimentos de nascer e viver numa ilha para que lado pende o prato. Mais difícil ainda se torna pensar como teria sido em Lisboa, Viseu ou Freixo de Espada à Cinta. Melhor? Pior? Só Deus sabe. Uma coisa é certa. Teria sido diferente. Inclino-me, porém, a acreditar que, tudo espremido, foi bom nascer e viver nas Flores. E sobretudo assistir às enormes transformações e progressos da  minha terra nos últimos trinta anos.

José do Espírito Santo Câmara de Freitas Silva

Castelo Branco-Julho de 2002


Publicado em Luana - a Gabriela Silva das Flores