quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

José Craveirinha



José Craveirinha, poeta maior da literatura moçambicana e primeiro africano a ganhar o prémio Camões (1992) cresceu no mesmo bairro onde o Eusébio deu os primeiros toques na bola, no periférico Mafalala, Maputo.

Nasceu em 1922 quando a antiga Lourenço Marques ainda nem era bem uma cidade, senão o embrião da metrópole em que se começou a converter anos mais tarde. Fez da escrita a sua vida e o meio mais-que-perfeito para denunciar abusos contra os Direitos Humanos.

Já se sabe que a ignorância é a namoradinha do preconceito. Devo admitir que eu era, estava e estou ainda muito ignorante em relação à obra do Craveirinha. Parti da minha ideia preconcebida que ele havia escrito essencialmente contra a ocupação colonial dos portugueses e a favor da construção da identidade moçambicana. Não sendo de todo errado, descobri graças a um livro emprestado, que o Craveirinha se deu ao trabalho de fazer as coisas tão bem feitas, que aquele que leia alguns dos seus poemas mas que desconheça quem é e de onde vem o poeta, pensará que ele está a descrever uma situação típica na Faixa de Gaza, na Síria, no Afeganistão e em tantos outros focos bélicos.

Quero com isto dizer que dei um pontapé na ignorância. Em troca ganhei o prazer da companhia de um poeta que é de Moçambique, dos moçambicanos e de todas as pessoas. Um defensor dos Direitos Humanos. E se não fosse assim ora digam-me lá porque é que ele teria escrito coisas como estas:



Cancioneiro de Xiguevengos

Mãe e filha partiram de Chidenguele
com todos os quesitos cumpridos
mais dois: outra filha e uma irmã raptadas

Três semanas antes tinham pedido ao Grupo Dinamizador
salvos-condutos de viagem à vizinha localidade
para evitar problemas no “control”

Com todos os seus requisitos em ordem
antes da curva do segundo canhoeiro
mãe e filha foram violadas.

Depois a récua de xiguevengos
foi antologiando as duas
no versátil cancioneiro
das catanadas


Outra beleza

Uns exibem insólitos perfis
de outra beleza
maquilhada
no mato.

Ou
do viés
ou de frente
perfeitos modelos de caveira
desfilam sem nariz.


O Seio

Mamana
amamentando
vale a pena sobreviver
ao holocausto da horda?

Ela
a olhar
os cães devorando
sua carne do seio amputado?


João Matangulana

Refugiado na emergência do volante
João Matangulana súbito conseguiu
Reforma de condutor
Há 35 anos
Encartado

No paradeiro do emboscado Mercedes Benz
A família identificou João Matangulana
Pela meia chapa da matrícula
Apanhada no entulho


Propaganda

Era tudo falso.
Tudo propaganda do inimigo.
Cabala infame.
No corpo intacto não se notava
Nenhum sinal de tortura
Nem qualquer espécie de sevícia.

Só...
Cabeça reclinada na areia
Ele repousava degolado.



Agradeço a Ofélia Queirós a licença para publicar esta mensagem do seu blogue cabeça no ar ou ar na cabeça