segunda-feira, 11 de março de 2013

Viva o Povo Brasileiro (João Ubaldo Ribeiro)



O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias. Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias, pouco antes de receber contra o peito e a cabeça as bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas bombardetas portuguesas, que daqui a pouco chegarão com o mar. Vai morrer na flor da mocidade, sem mesmo ainda conhecer mulher e sem ter feito qualquer coisa de memorável.

É certamente com a imaginação vazia que aqui desfruta desta viração anterior à morte, pois não viveu o bastante para realmente imaginar, como até hoje fazem os muito idosos em sua terra, todos demasiado velhos só para querer experimentar o que lá seja, e então deliram de cócoras com seus cachimbos de três palmos, rodeados pelo fascínio dos mais novos e mentindo estupendamente.

E talvez falte apenas um minuto, talvez menos, para que os portugueses apareçam à frente deste sol forte de inverno na Baía de Todos os Santos e façam enxamear sobre ele aquelas esferazinhas de ferro e pedra que o matarão com grande dor, furando-lhe um olho, estilhaçando-lhe os ossos da cabeça e obrigando-o a curvar-se abraçado a si mesmo, sem nem poder pensar em sua morte.

No quadro "O Alferes Brandão Galvão Perora às Gaivotas", vê-se que é o 10 de junho de 1822, numa folhinha que singra os ares, portada de um lado pelo bico de uma gaivota e do outro pelo aguço de uma lança envolvida nas cores e insígnias da liberdade. Já mortalmente atingido, erguendo-se com um olho a escorrer pela barba abaixo, ele arengou às gaiivotas que, antes distraídas, adejavam sobre os brigues e baleeiras do comandante português Trinta Diabos. Disse-lhes não uma mas muitas frases célebres, na voz trêmula porém estentórea desde então sempre imitada nas salas de aula ou, faltando estas, nas visitas em que é necessário ouvir discursos. Pois, se depois da metralha portuguesa não havia ali mais que as aves marinhas, o oceano e a indiferença dos acontecimentos naturais, havia o suficiente para que se gravassem para todo o sempre na consciência dos homens as palavras que ele agora pronuncia, embora daqui não se ouçam, nem de mais perto, nem se vejam seus lábios movendo-se, nem se enxergue em seu rosto mais que a expressão perplexa de quem morre sem saber. Mas são palavras nobres contra a tirania e a opressão sopradas pela morte nos ouvidos do alferes, e são portanto verdadeiras. 

Coisas opostas, a glória em vida e a glória na morte, somente esta parece perseguir a alma sempre encarnante do alferes. Do contrário, não estaria ele ali, naquele dia e naquele lugar, podendo ter ido a outra parte qualquer do Recôncavo onde o povo se reunisse para beber e para aclamar o Regente e Imortal Príncipe Dão Pedro, Defensor Perpétuo do Hemisfério Austral. Lá finado e herói, com suas cada vez mais alargadas palavras às gaivotas circulando de boca em boca, o alferes não ouviria a alta proclamação que em muitas festas se fez na cidade do Catu, como não veria diversas outras que se seguiram desde o dia pressagioso em que o Senado da Câmara da Bahia, fervendo de ressentimento e ódio porque a Corte embarcara em seus navios para Portugal do mesmo jeito alheio com que chegara, recusou registro à Carta Régia em que se nomeava Comandante d'Armas o Brigadeiro Inácio Madeira de Melo. 

O povo brasileiro se levantava contra os portugueses e discursos caudalosos ribombavam pelas paredes das igrejas, boticas e salões onde os conspiradores profetizavam a glória da América Austral, fulcro de esplendor, fortuna e abundância. Em toda parte sagravam-se novos heróis, um a cada dia em cada povoado, às vezes dois ou três, às vezes dúzias, com as notícias de bravuras voando tão rápido quanto as andorinhas que passam o verão na ilha. 

Assim foi ao arribar ao porto da Bahia a famosa corveta Regeneração, que trazia de volta, agora anistiados, importantes heróis. levados presos por sedicão ao castelo de São Jorge, na capital opressora, Envoltos nas brumas da lenda, esses homens do Destino logo dilataram por todas aquelas terras a reputação de seu valor incomparável, a beleza de seu cada gesto, a força certeira de cada coisa dita, o caráter jamais quebrantado por fraqueza humana. E não podia o coração de José Francisco senão bater mais depressa, o queixo tremelicar e a cabeça girar, quando, como se houvesse tambores rufando pelas abas da capa de debruns escarlates, o grande guerreiro Tenente João das Botas, passageiro da Regeneração, desembarcou ao pôr-do-sol para visitar a ilha em segredo e falou a alguns homens que o boticário reunira na Ponta das Baleias.

João Ubaldo Ribeiro

Viva o povo brasileiro é um romance histórico escrito por João Ubaldo Ribeiro e publicado em 1984. A narrativa percorre quatro séculos da história do País. Em suas quase setecentas páginas, vemos da chegada dos holandeses à Bahia, no século XVII, até os anos 70 do século XX, representados ficcionalmente.

A construção da identidade é tema central em Viva o povo brasileiro.