quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Os três poemas do guiché (Alexandre O'Neill)


Eis os três poemas de Alexandre O'Neill em que o guiché (o guichê) e as pessoas de um lado e do outro dele são protagonistas. O livro é Entre a cortina e a vidraça (1972)

Nota. guiché. do fr. guichet. Pequena porta ou abertura destinada a atendimento ao público, geralmente para pagamentos, recebimentos, venda de bilhetes, etc. = GUICHÊ, POSTIGO. (Priberam)



GUICHÊ / 1

Quando o burocrata trabalha é pior do que quando destrabalha.
Antes quero esperar, aquém guichê, que ele discuta toda a bola ou pedal
                                                                             (que tem para discutir
com os destrabalhadores dos seus colegas;
antes quero esperar pelo meu burocrata
do que ter a desilusão de o ver trabalhar para mim mal eu chegue.
Isso custa-me pés e cotovelos, cãibras e suspiros, repentinos ódios vesgos,
projectos de cartas a directores de vespertinos,
mas se o meu burocrata assomasse à copa do papel selado
e me convidasse, acto contínuo, a dizer ao que vinha pelo higiefone,
da boca não me sairia um pedido, mas um regougo,
e eu teria de ceder a vez
ao cigarro que me queimasse a nuca.
É preciso exercer a paciência e cultivar a doçura no canteiro do rosto,
enquanto o burocrata destrabalha.
Geralmente não serve de nada pigarrear ou dizer com voz-passadeira «Fazmòbséquio».
Levantar-se-iam, além guichê, as sobrancelhas de, pelo menos, três sujeitos.
Melhor será começar pelo globo que pende do tecto
e que é um olho vazado sobrepujando a cena.
Melhor será observar como a mosca dos tinteiros
nele pousa as patinas escriturárias.
Depois (lição de coisas!) baixar os olhos para o calendário mural
e ver quantas cruzes a azul ainda faltam para liquidar o mês.
A seguir, circunnavegar o olhar para ir enquadrar noutra parede
um calendário perpétuo parado um mês atrás.
Também aqui há zelo e desmazelo.
Também aqui falta o tempo e sobra o tempo.
Por certo é o mantenedor do calendário em dia
o que está a vir para estes lados.
Já olhou para mim. Sorrio-lhe. Passou.
Volto ao globo e, geografia cega,
pergunto aos meus botões «Onde será Paris?».
Mas não é o terráqueo. É um abafador
que trago desde a infância e não abafou népia.
Curvo-me, enfio a cabeça pelo guichê e, num assomo,
comando em voz clara e alta: TODOS AOS SEUS LUGARES!
Quebrei o encanto!
Os burocratas que destrabalhavam correm pra mim à uma.
Trémulo de prazer, pergunto a um deles «É o senhor o meu?»



GUICHÊ / 2

Há pessoas que são como aviões no ar:
precisam de muita gente a apoiá-los de terra.
Essa que se insinuou a meia-bicha devia ser uma delas:
com um sorriso meteu-se à frente de quatro e só dois resmungaram.
Pouco. Estão habituados ao atropelo.
A espertalheta virou-se para mim a pedir-me a caneta.
«Canetas não se emprestam, mas por ser para si...»,
disse eu. E dei comigo de caneta na mão
a oferecê-la àquela que me ultrapassara
e com a minha caneta afinal assinava.
Até os burocratas que destrabalhavam
ao guichê assomaram quando ela firmava.
Eram três (os gentis!) a ouvir as pulseiras
que ela tilintava com as suas maneiras
de nada subscrever logo assim às primeiras.
Quando, língua de fora, ela assina-assinou,
um veio com o mata-borrão e incontinenti lhe secou
a assinatura. Ela sorriu e entregou
o requerimento para sua excelência.
A bicha comoveu-se: teria ela urgência?
Assim se passa de embirrenta intrometida
a senhora por três (e por mim) assistida,
que à beira-guichê é assim a vida...



GUICHÊ / 3

Dum cutelo-guichê sem higiafone
senti o frio na nuca e, por broma, imaginei-me na nuca de Antonieta
(referência cultural como qualquer outra).
Dar o pescoço e nem por aférese perder a cabeça
não é para todos quando nos burocratas.
Das doze e trinta às catorze e trinta
estive garrotado e encimado por um letreiro: ENCERRADO.
Estiquei a língua para um frasco de cola,
mas só a mosca dos tinteiros nele arriscava duas das patas.
Meditei (que fazer?) a gasta superfície do balcão
e, português derrotado, pensei:
«Onde veio parar a madeira das naus!»
O tempo demorava a passar como aquela estúpida reflexão
e eu, de grossa língua seca, sentia as ardências todas
do nauta que tragou meia barrica de sardinha.
Das mãos fiz passarinhos cegos contra o vidro,
baquetas ruflando a minha impaciência,
aranhas passeando o que me restava de pescoço.
«Vou pôr-me todo nos olhos, que os olhos salvam!»
e pela ponte pênsil dum olhar passei para o relógio,
que adiantei meia discreta hora.
Do mostrador alcancei uma flor num copo.
Com ela devaneei numa lapela imaginária,
mas o passeio não deu para mais nada.
Tocou a campainha e um contínuo entrou.
«Que faz aqui o senhor? O expediente ainda está encerrado!»,
praguejou o contínuo e, dando meia volta,
correu a chamar o general dos contínuos.
Este veio. Passou-me revista. Não se dignou falar-me.
Ainda hoje gostava de saber porquê.
Às catorze e trinta (três pela minha hora)
uma funcionária aproximou-se do guichê,
levantou o cutelo que me sujeitava,
retirou o letreiro e (até amável!) perguntou-me:
"O senhor o que deseja?"
E era, à beira-guichê, como se não tivesse acontecido nada!

Alexandre O'Neill