quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A disciplina do amor (Lygia Fagundes Telles)



Abro uma antiga mala de velharias e lá encontro minha máscara de esgrima. Emocionante o momento em que púnhamos a máscara – tela tão fina – e nos enfrentávamos mascarados, sem feições. A túnica branca com o coração em relevo no lado esquerdo do peito, ‘olha esse alvo sem defesa, menina, defenda esse alvo!’ – advertia o professor e eu me confundia e o florete do adversário tocava reto no meu coração exposto.

Lygia Fagundes Telles

Do seu livro A Disciplina do Amor. Fragmentos.(1980)



segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Os Cus de Judas (António Lobo Antunes)




Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do rinque de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fios de rebuçado na concha da língua. Não sei se lhe parece idiota o que vou dizer mas aos domingos de manhã, quando nós lá íamos com o meu pai, os bichos eram mais bichos, a solidão de esparguete da girafa assemelhava-se à de um Gulliver triste, e das lápides do cemitério dos cães subiam de tempos a tempos latidos aflitos de caniche. Cheirava aos corredores do Coliseu ao ar livre, cheios de esquisitos pássaros inventados em gaiolas de rede, avestruzes idênticas a professoras de ginástica solteiras, pinguins trôpegos de joanetes de contínuo, catatuas de cabeça à banda como apreciadores de quadros: no tanque dos hipopótamos inchava a lenta tranquilidade dos gordos, as cobras enrolavam-se em espirais moles de cagalhão, e os crocodilos acomodavam--se sem custo ao seu destino terciário de lagartixas patibulares. Os plátanos entre as jaulas acinzentavam-se como os nossos cabelos, e afigurava-se-me que, de certo modo, envelhecíamos juntos: o empregado de ancinho que empurrava as folhas para um balde aparentava-se, sem dúvida, ao cirurgião que me varreria as pedras da vesícula para um frasco coberto de rótulo de adesivo: uma menopausa vegetal em que os caroços da próstata e os nós dos troncos se aproximavam e confundiam irmanar-nos-ia na mesma melancolia sem ilusões: os queixais tombavam da boca como frutos podres, a pele da barriga pregueava-se de asperezas de casca. Mas não era impossível que um hálito cúmplice nos sacudisse as madeixas dos ramos mais altos, e uma tosse qualquer rompesse a custo o nevoeiro da surdez em mugidos de búzio, que a pouco e pouco adquiriam a tranquilizadora tonalidade da bronquite conjugal.

António Lobo Antunes

Começo do seu livro Os Cus de Judas (1979)

Há vários anos que o nome de António Lobo Antunes é apontado como um dos candidatos ao Prémio Nobel da Literatura.



sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Perto do Coração Selvagem (Clarice Lispector)



A máquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? roupa-roupa-roupa. Não, não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, gran¬de, cor-de-rosa e morta. Os três sons estavam liga¬dos pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da árvore que se esfregavam umas nas outras radiantes.

Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer. E podia sentir como se estivesse bem próxima de seu nariz a terra quente, socada, tão cheirosa e seca, onde bem sabia, bem sabia uma ou outra minhoca se espreguiçava antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam comer.

Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a funcionar, a máquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver. Só faltava o tin-dlen do relógio que enfeitava tanto. Fechou os olhos, fingiu escutá-lo e ao som da música inexistente e ritmada ergueu-se na ponta dos pés. Deu três passos de dança bem leves, alados.

Clarice Lispector

Do seu romance Perto do Coração Selvagem (1943), escrito quando ela tinha apenas 19 anos.




quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O sabor das palavras (Eugénio de Andrade)

Amanhecer no leste da Madeira (Fotografia de suzyesue)


O SABOR DAS PALAVRAS

Quanto a mim, gosto das palavras que sabem a terra, a água, aos frutos de fogo do Verão, aos barcos no vento; gosto das palavras lisas como seixos, rugosas como pão de centeio. Palavras que cheiram a feno e a poeira, a barro e a limão, a resina e a sol.

Eugénio de Andrade


segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Uma Abelha na Chuva (Carlos de Cliveira)



Pelas cinco horas duma tarde invernosa de Outubro, certo viajante entrou em Corgos, a pé, depois da árdua jornada que o trouxera da aldeia de Montouro, por maus caminhos, ao pavimento calcetado e seguro da vila: um homem gordo, baixo, de passo molengão; samarra com gola de raposa; chapéu escuro, de aba larga, ao velho uso; a camisa apertada, sem gravata, não desfazia no esmero geral visível em tudo, das mãos limpas à barba bem escanhoada; é verdade que as botas de meio cano vinham de todo enlameadas, mas via-se que não era hábito do viajante andar por barrocais; preocupava-o a terriça, batia os pés com impaciência no empedrado. Tinha o seu quê de invulgar: o peso do tronco roliço arqueava-lhe as pernas, fazia-o bambolear como os patos: dava a impressão de aluir a cada passo. A respiração alterosa dificultava-lhe a marcha. Mesmo assim, galgara duas léguas de barrancos, lama, invernia. Grave assunto o trouxera decerto, penando nos atalhos gandarenses, por aquele tempo desabrido.


Carlos de Oliveira

Do seu livro Uma abelha na chuva (1953)


Há um filme, baseado neste romance, com o mesmo título.




sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Os criadores de heróis (Emília Ferreira)



Na sequência dos incêndios que nos têm consumido árvores e vidas, o jornalista Ferreira Fernandes publicou, no dia 12 de Agosto, um belo texto intitulado "A soldado desconhecida" e dedicado a Josefa, a jovem bombeira voluntária que perdeu a vida em Gondomar, lutando contra o fogo. O jornalista terminava o seu elogio a esta estirpe de jovens, de que a bombeira era um excelente exemplo, perguntando: "Como é possível, nos dias comuns e não de tragédia, não ouvirmos falar das Josefas que são o sal da nossa terra?".

Tem toda a razão. Mas, se calhar, devíamos devolver a pergunta à sua classe profissional. Como é possível, nos dias comuns, apenas ouvirmos e lermos sobre gente sem interesse, gente que ganha a vida de modo tantas vezes destituído de qualquer valor e valia, gente cuja existência nada acrescenta de benigno às vidas dos outros? Quem cria esses valores? Quem promove esses modelos?

Os media estão cada vez mais vazios de conteúdos de interesse. E quando digo interesse refiro-me a temas que possam despertar nos leitores/ouvintes/espectadores alguma coisa mais para além da cusquice, da má-língua, do desprazer. Os heróis que os media criaram e nutriram, nos últimos anos, não têm nada de inovador nem criativo. É gente que se limita a imitar bem vozes ou estilos de outros, a fazer birras, a provar que as suas vidas são de uma pobreza confrangedora. Porque é que essa gente deve ser modelo para alguma coisa?

Os heróis que povoam as revistas cor-de-rosa, na maior parte dos casos, completamente desconhecidos e isentos de mérito, são com frequência apresentadores de televisão, bizarros fenómenos associados a produtos televisivos (outra vez) de minguada exigência narrativa, representativa ou outras. Os júris dos programas (televisivos...) que instam o público à inútil imitação são acríticos, com frequência mal educados e soberbos. O público aplaude, acéfalo, tudo o que lhe põem à frente. Os noticiários e as notícias da imprensa escrita insistem no mesmo vazio de ideias. A crítica literária, artística, o ensaio, estão reduzidos a uma expressão cada vez mais escassa. Com a excepção de alguns produtos (televisivos, há que fazer justiça, neste caso) de divulgação de investigação e risco (veja-se, por exemplo, Sucesso.pt) de alguns portugueses que resistem "ainda e sempre", nada nos fala nos que fazem. Apenas nos que desfazem. Ou nos que deixam andar.

Emília Ferreira,  no seu blogue O meu hipericão ( o texto completo da mensagem)


quinta-feira, 16 de setembro de 2010

"na hora de pôr a mesa, éramos cinco" (José Luís Peixoto)

Fotografia de Paulo Simão


na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.

José Luís Peixoto



quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A avó, a cidade e o semáforo (Mia Couto)



Quando ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Ndzima emitiu as maiores suspeitas:
- E vai ficar em casa de quem?
- Fico no hotel, avó.
- Hotel? Mas é casa de quem?
Explicar, como? Ainda assim, ensaiei: de ninguém, ora. A velha fermentou nova desconfiança: uma casa de ninguém?
- Ou melhor, avó: é de quem paga - palavreei, para a tranquilizar.
Porém, só agravei - um lugar de quem paga? E que espíritos guardam uma casa como essa?
A mim me tinha cabido um prémio do Ministério. Eu tinha sido o melhor professor rural. E o prémio era visitar a grande cidade. Quando, em casa, anunciei a boa nova, a minha mais-velha não se impressionou com meu orgulho. E franziu a voz:
- E, lá, quem lhe faz o prato?
- Um cozinheiro, avó.
- Como se chama esse cozinheiro?
Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso, nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado acto. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegurava a pureza da peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anónima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinhador de que nem o rosto se conhece.
- Cozinhar não é serviço, meu neto – disse ela. - Cozinhar é um modo de amar os outros.
Ainda tentei desviar-me, ganhar uma distracção. Mas as perguntas se somavam, sem fim.
- Lã, aquela gente tira água do poço?
- Ora, avô...
- Quero saber é se tiram todos do mesmo poço...
Poço, fogueira, esteira: o assunto pedia muita explicação. E divaguei, longo e lento. Que aquilo, lá, tudo era de outro fazer. Mas ela não arredou coração. Não ter família, lá na cidade, era coisa que não lhe cabia. A pessoa viaja é para ser esperado, do outro lado a mão de gente que é nossa, com nome e história. Como um laço que pede as duas pontas. Agora, eu dirigir-me para lugar incógnito onde se deslavavam os nomes! Para a avó, um país estrangeiro começa onde já não reconhecemos parente.

Mia Couto

Do seu livro O fio das missangas (2004)

O conto completo aquí, no blogue Contos de aula


Na página da Editora Caminho podemos ler: "Uma vez mais Mia Couto regressa ao conto, género literário que parece ser o da sua maior realização. Estórias breves mas contendo, cada uma delas, as infinitas vidas que se condensam em cada ser humano. Uma vez mais, a linguagem é trabalhada como se fosse delicada filigrana, confirmando o que o autor disse de si mesmo: «conto estórias por via da poesia».

São vinte e nove contos unidos como missangas em redor de um fio, que é a escrita encantada de um consagrado fabricador de ilusões."


Mia Couto, nascido António Emílio Leite Couto (Beira, 5 de Julho de 1955), é um escritor moçambicano, filho de portugueses que emigraram a Moçambique nos meados do século XX.





terça-feira, 14 de setembro de 2010

O caixão do Molhado (Pepetela)



SÔ BELARMINO MOREIRA nasceu na cidade do Porto, cidade que ele nunca nomeava pela designação oficial, mas pela carinhosa de «Invicta». O feliz acontecimento que o trouxe ao mundo aconteceu em 1918, num dia que culminava uma semana inteira de chuva ininterrupta na Península Ibérica e arredores. Por isso o rio ameaçava galgar todos os muros e obstáculos que ao longo da Ribeira as pessoas tinham acumulado à força de braços e também dos músculos dos mulos, para evitar a inundação. Trabalho insano e praticamente inútil, pois no momento em que a mãe o empurrou para a vida ao ar livre, Belarmino escapou às mãos cansadas da parteira e mergulhou pela primeira vez na água do Douro, que por essa altura já subia a vinte centímetros no chão da casa. Por isso o seu primeiro nome não foi Belarmino, como o conheceremos mais tarde, mas «Molhado», como lhe chamaram sempre na cidade natal. O pai, vagamente adepto da Maçonaria e declaradamente anticlerical, arranjou no facto pretexto para não permitir que fosse baptizado, já lhe chegava de águas, coitadinho, que mal saiu do calorzinho aconchegante do ventre materno logo mergulhou no Douro castanho e gelado.

Muito mais tarde falaria sempre a brincar do seu primeiro nome de Molhado. Mas descrevia com supersticiosa reserva, já muito a sério, a primeira visão que teve de uma outra cheia do Douro, aos quatro anos de idade. A visão que para sempre o marcou foi a do cadáver de um homem a passar no rio que corria, inchado, à frente da sua casa. Sempre associou as cheias do Douro a esse instante de mudo terror. E registou, com notável precisão, o infortúnio desmedido de se passar silenciosamente à frente de uma cidade, sem um caixão que resguardasse a face morta e pálida dos curiosos olhares dos outros.

Quando o Molhado tinha cinco anos, o pai partiu para Angola, tentar a sorte. E quatro depois, seguiu a família, ele, a mãe, e três irmãos. Para trás ficou definitivamente o Douro e suas cheias. E quando lhe perguntavam na escola de Luanda de onde tinha vindo ele respondia sempre da Invicta, pois claro. Viveu no alto da Boavista, num sítio onde havia poucas casas e piores estradas, sobretudo quando chovia. Deste sítio do outro lado do mundo também via água ao sair de casa. Só que esta era do mar e contida numa calma e belíssima baía azul com coqueiros e palmeiras à volta. Se apaixonou pela diferença de cores e nunca mais quis mudar de sítio. E, por morar na Boavista de Luanda, se tornou adepto ferrenho do clube de futebol Boavista, do mesmo nome mas do Porto.

Pepetela

Do seu livro Contos de Morte. Caxinde, 2008

O conto completo aquí, no blogue Contos de Aula.



Escritor angolano, Pepetela é um dos nomes mais relevantes da literatura contemporânea de língua portuguesa. Em 1997 foi galardoado com o Prémio Camões, considerado o mais importante prémio literário para autores de língua portuguesa.

Pepetela, de nome próprio Artur Pestana, nasceu em Angola, na província litoral de Benguela, aos 29 de Outubro de 1941. Descendente de uma família colonial, os seus pais eram, no entanto, já nascidos em Angola.

Resto da biografia em C.I.T.I.



segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Regresso às aulas



A luta dos pais contra o insucesso escolar deve começar hoje

A valorização do esforço e da ética do trabalho deve começar no primeiro dia de aulas. Hoje é um bom dia para os pais folhearem os manuais com os filhos.


Tendo em conta o calendário oficial, no fim do dia de hoje todas as escolas do país terão aberto portas. Para as famílias, é um marco - cumprida a lufa-lufa da compra do material escolar e ultrapassada a discussão sobre o custo dos manuais, os pais entregam os filhos na escola e tendem a respirar de alívio. Acontece que isto é um erro, avisam os especialistas. "O sucesso escolar não acontece no fim do ano lectivo, começa agora e, neste processo, os pais não são dispensáveis", diz Dulce Gonçalves, investigadora em Psicologia da Educação.

"Gostaste da escola? E dos professores? Os colegas foram simpáticos? Brincaste no recreio? Com quem?" - ouvirão hoje milhares de crianças. "Mesmos os pais mais atentos tendem a preocupar-se apenas, nesta fase, com a adaptação social da criança, e a adiar, "lá mais para a frente", a questão do sucesso ou do insucesso escolar", tem verificado João Lopes, psicólogo da Educação e professor na Universidade do Minho. Não que desvalorize a estabilidade emocional das crianças. A questão, frisa, "é que os pais não se podem demitir de acompanhar a componente académica".

Mais do que isso, reforça Dulce Gonçalves, da Universidade de Lisboa, é preciso que "actuem já". "Por uma razão simples", contribui João Lopes: "Se os problemas forem detectados agora, ainda sobram dez meses para os resolver; de contrário, não só se perde um tempo precioso, como se permite que as dificuldades cresçam até se tornar quase impossível lidar com elas ."

Aos pais pede-se, precisamente, o quê? Pedro Sales Rosário, também professor na Universidade do Minho, responsável pelo Grupo Universitário de Investigação em Auto-regulação, responde, provocador: "Pede-se aos pais que se preocupam com os filhos que façam o favor de se ocupar deles, também; que assumam a tarefa de prevenir o insucesso e de promover o sucesso, embora eu reconheça que é infinitamente mais fácil deixar andar e depois, no fim do ano, culpar os professores e o "sistema"."

Dulce Gonçalves dá conselhos práticos. Exemplos: "Folhear os manuais escolares com os filhos, ajudá-los a recordar conhecimentos prévios essenciais às novas aprendizagens e garantir que os treinam, se estiverem esquecidos"; mas também "premiar o esforço, promovendo uma ética do trabalho", "valorizar a escola e os professores" e até "garantir que se alimentam bem e que dormem o número de horas adequado".

Naturalmente, há situações que exigem medidas mais drásticas, sublinham todos. E, neste campo, os psicólogos de educação não concedem qualquer período de tolerância aos pais cujos filhos transitaram de ano com dificuldades. "Para esses, hoje já não é cedo", avisa Dulce Gonçalves. Os pais devem ir à escola, pedir apoio pedagógico; e, eventualmente, acrescenta, "procurar apoio externo, explicadores que possam dedicar mais tempo às crianças e que sejam capazes de identificar lacunas e de as colmatar".

Os alertas dos alunos

"Actuar já" pode ser determinante no corte de "um círculo vicioso com consequências muito graves", alertam os especialistas. "As pessoas consideram natural que problemas de comportamento se reflictam nos resultados escolares e não calculam quantas vezes acontece o contrário; quantas crianças se tornam problemáticas em reacção ao sofrimento que lhes causa a noção de incompetência no domínio académico", diz João Lopes.

O investigador insiste que este é um aspecto subvalorizado: "Os primeiros a detectar as fragilidades são os próprios alunos, por comparação com os colegas. E imaginem a violência que é passar horas e horas, todos os dias, num sítio onde tudo lhes diz que estão a falhar." Normalmente, os estudantes reagem a esta "agressão" a dois tempos, adianta Sales Rosário: "Com tristeza, primeiro; e, depois, com uma espécie de desligamento: "Perdido por cem, perdido por mil.""

Graça Barbosa Ribeiro (Público, 13-Setembro-2010)



sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Lenda do paraíso



Esta é a Lenda do paraíso, conto popular da tradição oral portuguesa.


Criou Deus o homem e colocou-o no Paraíso. Ao fim de dias apareceu-lhe e perguntou:

–Como te dás por cá?
–Sopra-me da banda do Norte, e tenho muito frio.

Deus fez-lhe um muro que o guardava dos ventos do Norte. Ao cabo de dias tornou-lhe a aparecer e pergunta:

–Como te dás por cá?
–Sopra da banda do Sul e ainda tenho frio.

Deus fez-lhe outro muro. Ao cabo de dias apareceu-lhe, fazendo a mesma pergunta:

–Chove-me agora em cima.

Deus cobriu os muros com um tecto, para o abrigar das chuvas.
Tornou-lhe depois a aparecer:

–Como te dás agora?
–Estou sozinho entre estas quatro paredes; muito triste de estar sozinho.

Então Deus deu modo a arranjar-lhe uma companheira. Tornou-lhe a aparecer:

–Não tenho que comer, nem que dar à minha companheira.

Deus falou à terra, para ela dar de comer ao homem. A terra respondeu:

–Só lhe darei de comer, se o homem me tornar o que receber de mim.

Foi assim que o homem ficou sujeito a ser também comido pela terra.


Contos Tradicionais do Povo português, recolha de Teófilo Braga, 1883.



quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Versinhos a uma amiga finlandesa (Fernando Assis Pacheco)

Fotografia de mrdixonda


VERSINHOS A UMA AMIGA FINLANDESA

Ó Anna Lüsa Uski minha dama de antanho
o que é feito da tua bizarria
continuas bela como na fotografia?
eu quando penso em ti ainda tenho

dentro do pobre coração torcaz
aquele bicho a roer devagarinho
tu eras só pen pal mas tanto faz
mais sede não se tem de um pucarinho

não te perdoo que ficasses por lá
em Likkolampi casando com um qualquer
como pudeste ó Anna ser tão má?
yours sincerely já te chamava mulher

mais tarde eu fiz catorze anos
o amor era no meu peito como um lenho
quereis saber críticos vós fulanos?
inda me arrepia esta dama de antanho

Fernando Assis Pacheco




quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Quadrilha (Carlos Drummond de Andrade)

Quadrilha (Desenho de Janete Chiclete / Jana)


QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade



terça-feira, 7 de setembro de 2010

O Mandarim (Eça de Queirós)



Uma noite, há anos, eu começara a ler, num desses in-fólios vetustos, um capítulo intitulado «Brecha das Almas»; e ia caindo numa sonolência grata, quando este período singular se me destacou do tom neutro e apagado da página, com o relevo de uma medalha de ouro nova brilhando sobre um tapete escuro: copio textualmente:

«No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?»

Estaquei, assombrado, diante da página aberta: aquela interrogação «homem mortal, tocarás tu a campainha?» parecia-me faceta, picaresca, e todavia perturbava-me prodigiosamente. Quis ler mais; mas as linhas fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que deixavam, de uma lividez de pergaminho, lá ficava, rebrilhando em negro, a interpelação estranha – «tocarás tu a campainha?»


O Mandarim, novela de Eça de Queirós (1845-1900)



segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Ensaio sobre a cegueira (José Saramago)



Assim começa o romance de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira (1995). A obra mostra o caos a que se chega quando um dos sentidos falta a uma grande parcela da população. Isso tudo fica a dever-se a uma epidemia de cegueira que atinge toda a população.

Há também um filme de 2008 baseado neste livro (Blindness, em inglês) que foi produzido por Japão, Brasil e Canadá e dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles. O filme abriu o Festival de Cannes de 2008.


O disco amarelo iluminou-se. Dois dos automóveis da frente aceleraram antes que o sinal vermelho aparecesse. Na passadeira de peões surgiu o desenho do homem verde. A gente que esperava começou a atravessar a rua pisando as faixas brancas pintadas na capa negra do asfalto, não há nada que menos se pareça com uma zebra, porém assim lhe chamam. Os automobilistas, impacientes, com o pé no pedal da embraiagem, mantinham em tensão os carros, avançando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata. Os peões já acabaram de passar, mas o sinal de caminho livre para os carros vai tardar ainda alguns segundos, há quem sustente que esta demora, aparentemente tão insignificante, se a multiplicarmos pelos milhares de semáforos existentes na cidade e pelas mudanças sucessivas das três cores de cada um, é uma das causas mais consideráveis dos engorgitamentos da circulação automóvel, ou engarrafamentos, se quisermos usar o termo corrente.

O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila do meio está parado, deve haver ali um problema mecanico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixa de velocidades que se encravou, ou uma avaria do sistema hidráulico, blocagem dos travões, falha do circuito eléctrico, se é que não se lhe acabou simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o caso. O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do pára-brisas, enquanto os carros atrás dele buzinam frenéticos. Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o transito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não,duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego.


José Saramago, recentemente falecido, era o único Prémio Nobel de Literatura em língua portuguesa.


Fundação José Saramago


sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Origem do pseudónimo de Miguel Torga

Memorial Miguel Torga (1907-2007), vizinho à ponte de Santa Clara, Coimbra

Vamos ver como a origem de parte do pseudónimo de Miguel Torga (1907 - 1995) está ligado à nossa literatura. A outra parte é o nome de uma planta que em espanhol se chama "brezo" ou "brezo portugués" (Erica lusitanica).


Em 1934, aos 27 anos, Adolfo Correia Rocha autodefine-se pelo pseudónimo que criou, Miguel e Torga. Miguel, em homenagem a dois grandes vultos da cultura ibérica: Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno. Já torga é uma planta brava da montanha, que deita raízes fortes sob a aridez da rocha, de flor branca, arroxeada ou cor de vinho, com um caule incrivelmente rectilíneo.

A sua campa rasa em São Martinho de Anta tem uma torga plantada a seu lado, em honra ao poeta.

(Fonte: Wikipédia)




quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Pátria (Miguel Torga)


A URL do blogue, "nesgadeterra", veio também de uma obra de Miguel Torga, neste caso, um poema.

PÁTRIA

Soube a definição na minha infãncia.
Mas o tempo apagou
As linhas que no mapa da memória
A mestra palmatória
Desenhou.

Hoje sei apenas gostar
Duma nesga de terra
Debruada de mar.



Da palavra nesga diz-nos um dicionário: "Pequeno pedaço de terra entre terrenos extensos. P. ext. Pequena porção de qualquer espaço."

E palmatória, o que será?



quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Miguel Torga e o nome deste blogue

Terras de Trás-os-Montes (Fot. de Prado Gilbert)


O nome deste blogue, Um Reino Maravilhoso, tirei-o de um livro do escritor português Miguel Torga, intitulado Portugal. Ele nasceu numa aldeia chamada São Martinho de Anta, na região de Trás-os-Montes, no norte do país, e um dos capítulos desse livro é precisamente "Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)", de que dou em baixo o primeiro parágrafo. A fotografia por trás do título do blogue é Trás-os-Montes, uma terra dura onde a vida tem sido sempre difícil pelas suas condições naturais e pelo seu isolamento,  mas uma terra belíssima, à qual Torga rende homenagem nesse capítulo.

Mas eu queria que esse "Reino maravilhoso" fosse, aliás, para os alunos de Bachillerato desta Escola, o reino das palavras em português, sobretudo prosa, mas também verso; sobretudo literatura portuguesa, mas também brasileira, ou angolana, ou moçambicana, porque não? Tudo literatura escrita em português. Outra maneira de ver o mundo. E mais: teremos também excertos de revistas, de jornais e de blogues.

E assim é que começa “Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)”:


Vou falar-lhes de um reino maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois , não hesite. Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não existe como é dos mais belos que se possam imaginar. Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecíveis. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança.

Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente, rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desembainhada:

–Para cá do Marão, mandam os que cá estão!..

Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?

Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena:

–Entre!

A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.