segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O livro único (João Manuel Mimoso)



O LIVRO ÚNICO

Naquela manhã de Outubro de 1958 vi-me pela primeira vez como um anónimo na multidão. Daí nasceu a minha aversão (que ainda hoje mantenho) por todas as actividades de grupo.

Na parede o Presidente Salazar e o General Craveiro Lopes olhavam benignamente a sala. Quando a professora entrou, dois alunos repetentes (conheciam-se pelo facto de terem o dobro da nossa altura) levantaram-se e esticaram o braço direito. Confusos, todos os imitámos...

Do meu primeiro dia na Escola Oficial 78 guardo uma lembrança de paredes brancas e frases exemplificando consoantes e ditongos: “ao, ão, a tua mão, tanta mão, tanta mão” (ilustrado por meninos da Mocidade com o braço estendido); “L, l, lálarilálá, alto, altar, Lusitos! Viva Salazar! Viva Salazar!” (crianças cantando); F, f, os gatitos estão zangados e fazem f... f... f... f...” (gatos assanhados )...

Na página 55 (atingida por altura do Natal) começavam os textos. Um dos meus preferidos é “Quando eu for grande ” (pg. 84): “... O Carlos: Eu queria ser padre, ter uma igreja, um altar, dizer missa e pregar sermões. E eu, disse a Clarinha, gostava de ser missionária, ir para muito longe ensinar doutrina aos pretinhos. Pois eu, gritou a Filomena batendo palmas, quero ser dona de casa como a nossa mãe!”.

O último texto era o “Milagre das Rosas” e (inevitavelmente) havia que fazer uma redacção sobre o assunto. A minha preferida é a de um garoto que explicou: “A rainha levantou a saia e mostrou tudo. O rei disse: Senhora, nunca tal vi. O povo gritou em coro: Milagre, milagre!” (Não sei que nota teve).

Ao fim da tarde fazia os exercícios de cópia e de caligrafia (com caneta de tinteiro) sentado na mesinha ao canto da sala do velho 4º andar da Rua do Ouro. Só interrompia o trabalho quando os eléctricos para a Estrela desciam a rua com um tramm-tramm irritante. Há uns dias voltei à casa da Rua do Ouro e (chamem-lhe criancice ) sentei-me na sala a rever o livro por onde aprendi a ler. Gostava que a minha mesinha ainda existisse ao canto e que os eléctricos ainda partissem do Rossio – o seu tramm-tramm teria sido música para mim.

 João Manuel Mimoso

Lido na revista Kapa (anos noventa)