sexta-feira, 17 de maio de 2024

Ferreira Gullar - Uma voz

 



UMA VOZ

Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando.

Ferreira Gullar


Dentro da noite veloz (1975)



(Fotografia de Roge Ferreira)


segunda-feira, 13 de maio de 2024

Daniel Filipe - Romance de Tomasinho Cara-Feia

 


ROMANCE DE TOMASINHO CARA-FEIA 

Farto de sol e de areia
Que é o mais que a terra dá,
Tomasinho Cara-Feia
vai prá pesca da baleia.
Quem sabe se tornará?

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destinho.
Só nha Fortunata, a mãe,
Que é velha e não tem ninguém,
Chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta;
Deixou para sempre a horta,
que a longa seca matou.

Tomasinho Cara-Feia
(outro nome, quem lho dá?),
farto de sol e de areia,
foi prá pesca da baleia.

— E nunca mais voltará!


Daniel Filipe


(Ilha da Boavista, Cabo Verde, 1925 - 1964)    Mais dados em &Escritas.org




(Fotografia de Ilhéu Raso, Baleia-de-bossa (Megaptera novaeangliae))



segunda-feira, 6 de maio de 2024

Mário de Andrade - Quarenta anos



QUARENTA ANOS

A vida é para mim, está se vendo,
Uma felicidade sem repouso;
Eu nem sei mais se gozo, pois que o gozo
Só pode ser medido em se sofrendo.

Bem sei que tudo é engano, mas sabendo
Disso, persisto em me enganar… Eu ouso
Dizer que a vida foi o bem precioso
Que eu adorei. Foi meu pecado… Horrendo

Seria, agora que a velhice avança,
Que me sinto completo e além da sorte,
Me agarrar a esta vida fementida.

Vou fazer do meu fim minha esperança,
Oh sono, vem!… Que eu quero amar a morte
Com o mesmo engano com que amei a vida.

Mário de Andrade

Poesias completas, vol.1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, p. 437-438. [1933]

Retrato de Mário de Andrade, 1927 Lasar Segall


quarta-feira, 1 de maio de 2024

Sophia de Mello Breyner Andresen - As pessoas sensíveis

 

AS PESSOAS SENSÍVEIS 

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

“Ganharás o pão com o suor do teu rosto”
Assim nos foi imposto
E não:
“Com o suor dos outros ganharás o pão.”

Ó vendilhões do templo
Ó constructores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

Sophia de Mello Breyner Andresen


De Livro sexto, 1962




segunda-feira, 29 de abril de 2024

Hilda Hilst - Cançãozinha triste

Hilda Hilst, fotografada por Fernando Lemos



CANÇÃOZINHA TRISTE

E fiz de tudo.
Fui autêntica, durante algum tempo.
Fui inquietude e fragilidade.
Brilhei em roda de amigos.
Pratiquei o esporte com violência
e uma vez (trágica melancolia!)
nadei com aparente desenvoltura
(peito arfante e dilacerado)
mil metros na butterfly...
Fui amante, amiga, irmã,
sorri quando ele me disse coisas amargas...

E nada o comove.
Nada o espanta.
E ele mente
e mente amor
como as crianças mentem.

Hilda Hilst





.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Manuel Alegre a Salgueiro Maia (50 anos são passados!)

 



A Salgueiro Maia

Ficaste na pureza inicial
do gesto que liberta e se desprende.
Havia em ti o símbolo e o sinal
havia em ti o herói que não se rende.

Outros jogaram o jogo viciado
para ti nem poder nem sua regra.
Conquistador do sonho inconquistado
havia em ti o herói que não se integra.

Por isso ficarás como quem vem
dar outro rosto ao rosto da cidade.
Diz-se o teu nome e sais de Santarém
trazendo a espada e a flor da liberdade.

Manuel Alegre



Associação Salgueiro Maia


segunda-feira, 22 de abril de 2024

Pedro Homem de Mello - Balada do rio Douro



BALADA DO RIO DOURO

Que diz além, além entre montanhas,
O rio Doiro à tarde, quando passa?
Não há canções mais fundas, mais estranhas,
Que as desse rio estreito de água baça!...
Que diz ao vê-lo o rosto da cidade?
Ó ruas torturadas e compridas,
Que diz ao vê-lo o rosto da cidade
Onde as veias são ruas com mil vidas?...
Em seus olhos de pedra tão escuros
Que diz ao vê-lo a Sé, quase sombria?
E a tão negra muralha à luz do dia?
E as ameias partidas sobre os muros?
Vergam-se os arcos gastos da Ribeira...
Que triste e rouca a voz dos mercadores!...
Chegam barcos exaustos da fronteira
De velas velhas, já multicolores...
Sinos, caixões, mendigos, regimentos,
Mancham de luto o vulto da cidade...
Que diz o rio além? Por que não há-de
Trazer ao burgo novos pensamentos?
Que diz o rio além? Ávido, um grito
Surge, por trás das aparências calmas...
E o rio passa torturado, aflito,
Sulcando sempre o seu perfil nas almas!...

Pedro Homem de Mello



(Fotografia de César Augusto V. R.)